Vinte anos depois, António Barreto regressou ao seu livro sobre o Douro. Neste lapso de tempo houve coisas que pioraram, mas há também um acontecimento que impulsionou um “novo Douro”: a revolução dos vinhos de mesa.
António Barreto, sociólogo, é um dos mais profundos conhecedores do Douro contemporâneo. As suas análises sobre a evolução dos seus vinhos fazem cruzar no presente a memória e os desafios com que a região se confronta no futuro próximo. Preocupado com o défice de representação do Douro (“o Douro não tem voz”, lamenta) e com a excessiva concentração do comércio em seis grupos exportadores, Barreto alerta para os perigos com que a região se confronta.
Apaixonado pelo Douro, que conhece como se fosse a sua “casa”, o sociólogo é igualmente um devoto aos seus vinhos. Nos Porto prefere por agora os Colheita, embora já tivesse passado pelos Vintage. Mas se os Porto são o emblema do Douro, os seus DOC são a revolução que aponta o futuro.
Vinte anos depois regressa ao seu livro sobre o Douro, depois de se ter dedicado a um documentário sobre a região. É uma pulsão relacionada com o regresso às origens ou uma curiosidade intelectual que não se esgota? O que o faz regressar tão recorrentemente?
A primeira resposta é isso, é voltar a casa periodicamente. Eu saí de casa há muitos anos, tinha 18 anos, ou 17, fui para Coimbra, fui para Lisboa, fui para a Suíça e repetidamente regresso a casa. Já não tenho praticamente família no Douro, não tenho casa, não tenho terra, não tenho vinha, infelizmente. Mas tenho uma região, tenho uma terra.
Esta é a minha terra. Alguém me dizia um dia que isto era a minha paixão, mas eu digo que não: as paixões matam, as paixões não são recomendáveis. Então é amor… Também não é amor, porque tem-se amor por pessoas. E isto é mais o regresso a casa, sentir-me familiarizado com o meio ambiente, com as coisas. Mesmo que a Régua, Vila Real ou o Pinhão tenham mudado muitíssimo, quando estou no Douro sinto-me sempre em casa. Sei sempre onde está o interruptor e onde está a porta ou as escadas. É a minha casa e na minha casa sou capaz de andar com os olhos fechados.
O Douro é isso, com uma vantagem suplementar: é que, além de ser uma belíssima região, é também uma das regiões mais complexas. Em Portugal, no plano local, regional, nacional político e internacional, o Douro está tudo. Onde está o vinho estão as alianças geoestratégicas, está a política, estão as finanças públicas, está tudo envolvido na história do Douro e do vinho.
É um desafio intelectual tentar perceber essa complexidade?
Sistematicamente uma procura de tentar perceber, mas nunca se consegue perceber tudo. Há sempre mais qualquer coisa.
Houve alguma evolução nessa tentativa de entender o Douro?
Houve evolução. Tenho na minha vida um período em que me achava muito cosmopolita, em que achava que quem tinha feito o Douro foram, no essencial, os ingleses. Depois também atravessei a minha fase nacionalista, em que achava, ‘não senhor, os ingleses são os piratas, quem fez tudo foram os portugueses, os lavradores, os trabalhadores, os galegos’.
E, finalmente, percebi, há uns anos, usando uma expressão que pedi emprestada a um historiador francês, que o Douro é um local de encontro. Um encontro entre os portugueses, os ingleses e o mundo; um encontro entre lavradores, os proprietários, os consumidores; um encontro entre políticos e os locais e se não fosse uma acção tectónica destes conjuntos, não havia vinho do Porto. O vinho do Porto não é um produto natural. É uma construção.
Muitas vezes esses encontros geraram atrito, por vezes violência. Teria de ser assim?
Se nós retirarmos o que vinha de trás, do género açúcar, especiarias, escravos, ouro do Brasil, tudo coisas tiradas noutras partes do mundo, o produto que mais tempo ocupa com taxas da ordem dos 60 a 80% das exportações portuguesas é o vinho e dentro do vinho é o vinho do Porto.
O vinho do Porto foi durante 100 ou 200 anos o principal produto do comércio externo português. Do ponto de vista nacional, temos ali o lombo, o tesouro com que Portugal vai poder importar roupas, maquinarias. Tudo o que Portugal importou dos países industrializados foi pago com vinho e sobretudo com vinho do Porto. O vinho do Porto está no centro da política nacional praticamente durante 100 ou 200 anos.
Só o deixa de estar, na prática, por volta de 1960.
Com a exportação de outros produtos, as celuloses, a cortiça, a têxtil, e com a participação na EFTA [em 1960], a partir de um certo momento, o vinho do Porto passasse a representar apenas 10% das exportações, depois seis, cinco, quatro, três, dois… As autoridades políticas portuguesas já não se preocupam com o vinho do Porto há uns 30 anos, de todo, porque para eles não tem importância. Vêm perguntar: ‘mas, a Autoeuropa é mais importante do que o Douro…’ O vinho do Porto perdeu importância.
Escreveu que a criação da Companhia pombalina foi o “acto fundador do Douro”. Desde então fica-se com a sensação que o Douro só age pela intervenção do Estado, nunca de acordo com uma vontade dos seus agentes.
O Douro antes da Companhia não existia. A Companhia deu-lhe identidade e centralidade. Antes havia lavradores e produtores avulsos. O que dava mais unidade ao Douro era a participação inglesa, a partir do comércio exportador no Porto e em Gaia. É curioso: se o compararmos com as regiões vinícolas do mundo inteiro, o Douro é singular. Nem sequer o nome do vinho é o da região. É como se Bordéus não fizesse parte de Bordéus.
O Porto é aqui [a entrevista foi realizada no Porto], não a região que produz. O comércio está todo aqui. Só mais tarde com os Paladinos [um movimento de lavradores que levou à criação da Casa do Douro, em 1932] e com a própria Casa do Douro é que se começou a organizar a produção. A Companhia vem criar uma unidade. Cria fronteiras e com isso uma quase nacionalidade que indica que este pode produzir e aquele não, produzir o quê e para quem.
Disciplinou a produção. Logo aí acontece uma coisa importante, que é proteger o Douro da concorrência interna, dos vinhos da Estremadura, do Ribatejo, do Alentejo… o marquês de Pombal mandou arrancar milhares de hectares no país inteiro para proteger o Douro. Obrigou-se o Porto a consumir os seus vinhos, caríssimos, o que deu origem ao famoso motim do Porto [revolta popular liderada pelos taberneiros, em 1757]. Ao criar uma identidade e uma economia através da Companhia, o Douro passou a ter uma cabeça.
Que nunca se deu bem com as correntes do liberalismo económico…
Não. Por duas vezes, sobretudo uma, no século XIX, quando é decretada a liberalização e a Companhia é extinta, tudo corre mal. Os preços do vinho caem, a concorrência começa a ser exacerbada por todos os lados, a pirataria, o contrabando de vinhos, tudo começa a correr mal. Não há vinho de qualidade que se faça sem legislação. Quando a Companhia é extinta, os outros países estão a reforçar a disciplina e Portugal faz aquele episódio, que dura 20 ou 30 anos, de total liberalização e ninguém se entendeu bem com isso.
Faz sentido, neste tempo em que o pensamento económico dominante é de cariz liberal, pedir o reforço da ingerência do Estado no Douro e no vinho do Porto?
Eu acho que sim. Uma parte da responsabilidade é dos próprios durienses. Os agricultores, pequenos, médios ou grandes, os sócios das cooperativas ou da Casa do Douro, há aqui uma massa humana que poderia e deveria estar mais empenhada, mais activa, mais consciente dos seus direitos e dos seus deveres. Uma parte da deficiência vem daí. O Douro, as suas pessoas, os seus lavradores, as suas instituições não têm sido suficientemente protagonistas dos seus próprios interesses. E muitas vezes, quando se queixam, dizem ao Estado que faça…
Estão habituados…
Estão habituados há mais de 200 anos ou 300. Quanto ao Estado, eu tendencialmente sou liberal mas não sou nada dessas coisas que andam por aí agora a ferir a nossa economia e a nossa sociedade. O Estado tem obviamente de olhar para o sector, não pode de um momento para outro desaparecer. Uma região demarcada exige regulação, exige disciplina.
Ora o Estado, as autoridades centrais, desinteressaram-se muito do Douro. As câmaras desinteressaram-se e há uma espécie de jogo de empurra: o Estado queixa-se das câmaras das cooperativas e dos lavradores; os lavradores queixam-se das cooperativas e do estado. Há uma espécie de culpa circular. Mas há circunstâncias boas: umas dezenas de médias empresas, sobretudo nos vinhos do DOC, e também de vinho do Porto, criaram o novo Douro, com pouca ajuda do estado directamente.
O PDRITM [um programa financiado pelo Banco Mundial nos anos de 1980] e os programas europeus foram muito importantes. Metade do vinhedo do Douro foi transformado desde o PDRITM, nos anos 80, com o apoio da UTAD, com a CCDR (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte), com a Universidade do Porto, num processo que teve sucesso.
Hoje, os grandes grupos, que são cinco ou seis, controlam hoje algo como 85% do comércio do vinho do Porto. Nunca houve na história uma concentração tão elevada. Eu sei que são empresas boas, que merecem confiança, que fazem óptimos vinhos, simplesmente eu não acho saudável que haja um grau de concentração elevada.
Enquanto do outro lado a fragmentação é enorme. Só há mil agricultores com mais de cinco hectares...
Há muitos que não são produtores. Têm uns jardins que fazem umas uvas. Têm de se tratados como pessoas que mantêm o equilíbrio social e ecológico. São fundamentais para o equilíbrio da região, mas não podem ser tratados como alguém que produz cinco 10 20 pipas, que é um pequeno produtor mas que já tem uma escola.
Sabemos hoje que alguns dos grupos do vinho do Porto têm mais de 2500 fornecedores. Simplesmente isto mostra que há uma fortíssima organização no comércio e uma muito reduzida capacidade de organização social da região, o que faz com que esteja a perder rendimentos, força, esteja a perder a própria palavra. Ninguém sabe o que pensam hoje os lavradores do Douro como tal. Há aqui um desequilíbrio sério, que pode ser grave um dia e ao qual convinha pôr cobro.
A transformação da Casa do Douro, que em Janeiro perde funções públicas e a inscrição obrigatória, transformando-se numa associação privada como as das outras regiões do país, vai fragilizar ainda mais a sua situação?
Eu acho que vai fragilizar ainda mais porque não se sabe o que vai acontecer a seguir. Fica privada e depois? Quem é que vai estar lá, a fazer o quê, com que objectivos? Não se sabe. Vai perder património, creio que o vinho está todo penhorado, tem aquele edifício que também suspeito que esteja penhorado… Tenho pena que haja uma espécie de liquidação da Casa do Douro para nada.
Eu não gosto de associação obrigatória, é algo que fez o seu tempo. Poderiam encontrar-se soluções institucionais que não se têm tentado. A minha convicção é que se se liberalizar completamente a produção no Douro destrói-se a capacidade, a força social e vinícola da região. A disciplina, que foi muitas vezes imposta, é favorável a uma certa estabilidade social e política.
A disciplina e a protecção hoje no Douro são muito mais acentuadas na produção de vinho do Porto do que na do DOC Douro. O crescente protagonismo dos vinhos do Douro pode gerar conflitos no seio da região?
Eu penso que sim, pode haver conflitos. Anda hoje é para mim um mistério ver como os dois vinhos vão evoluir numa relativa paz entre ambos. Há empresas que já protestam, penso que vai haver ou que poderá haver atrito, mas pode também haver soluções. Estamos perante um caso que, se não é único é quase, que é uma região demarcada que produz dois vinhos diferentes. Não são variantes, são produtos diferentes. Ora para um caso destes valia a pena, quem sabe disto, entre juristas e economistas (economistas não muito, se possível…) ocuparem-se para encontrar soluções capazes de evitar o conflito.
O Douro é uma região de conflito recorrente. Em cada duas ou três décadas reaparece o conflito, ou económico, ou de luta de classes, ou de interesses políticos, ou de interesses externos. Isto é recorrente há 300 anos e tenho impressão que nos estamos a aproximar de uma nova década de atrito, de conflito entre os dois produtos, as duas mecânicas, os pequenos e os grandes. Já sabemos o suficiente depois destas décadas todas para podermos prevenir os conflitos. Mas não sei se os portugueses gostam de prevenir conflitos.
Sendo uma das regiões agrárias mais ricas do país, o Douro continua a apresentar indicadores sociais muito fracos.
De onde isto resulta? Em primeiro da monocultura. A monocultura é uma escravidão em qualquer parte do mundo. Onde há a monocultura, os ritmos de trabalho, a diversidade de trabalho, a variedade de oportunidades são muito poucas. Depois, a cabeça num sítio e o corpo no outro. Gaia tem o comércio e a exportação, e o grosso das mais-valias, e do outro lado está o Douro que produz, com mão-de-obra barata, com o menor possível de capacidade tecnológica e de instrução. Isto manteve-se ao longo dos séculos.
O Douro que há 300 anos já produzia para o capitalismo mundial, que chegava à grande bolsa das mercadorias europeias, - há capitalismo mais cedo no Douro do que no resto do país-, ficou sempre destituído das condições urbanas, educativas, técnicas. Eu nasci no Porto, vivi no Douro e não gosto de me inscrever nesse tipo de seitas que dizem que os ingleses são umas bestas e os portuenses não prestam, mas não tenho dúvida que esta dicotomia entre comércio e produção, o afastamento entre produção e comércio, e mais a escravidão da monocultura são os responsáveis pelo baixo nível de desenvolvimento do Douro.
No seu regresso a casa sente-a mais desarrumada ou não? Refiro-me à gestão da paisagem.
Tenho sentimentos contraditórios. Estou muito irritado, com receio mesmo de um ou dois desenvolvimentos. Houve a maluqueira das monocastas e da destruição de vinhas velhas e agora parece que se está a corrigir, que era um erro causador de erosão e de perda de diversidade.
Tenho receio da modernidade turística sem controlo e sem disciplina. Fizeram-se asneiras naquele bocado de auto-estrada à volta da Régua, que deixou feridas de betão na vinha, uma coisa absolutamente escandalosa, junto a vinhas que são Património Mundial.
Depois as barragens. Discute-se a barragem do Côa, é só uma, depois vem o Sabor, depois vem o Tua. Como vão ficar os vales dos afluentes do Douro? Estou com receio que se tenha feito de mais. Depois há um espécie de absoluto imperialismo de duas ou três grandes empresas, de dois ou três grandes interesses. Energia hidroeléctrica: nós queremos investir, queremos gastos, queremos fazer, temos dinheiro da Europa, de Portugal é preciso investir no quilowatt? Valia a pena ter dado cabo do vale do Tua e do Sabor?
Qual é a sua opinião?
Eu acho que não. Eu vou dizer uma coisa tonta, não tenho medo que o digam: vamos ter quatro ou cinco vales [com barragens], vamos deixar dois ou três. Não vamos faze-los todos. Vamos ter mais cuidado com a nossa paisagem natural. Este império do quilowatt, do betão, do asfalto continuam em nome de quê? Eu não vejo em nome de quê. Tem-se desenvolvido o turismo fluvial, que eu acho maravilhoso, já fiz duas ou três vezes a viagem para cima e para baixo. Mas atenção: até onde é que vamos? Já tive situações em que por exemplo os hotéis são perto do rio e tem os cruzeiros toda a noite a fazer barulho em frente aos hotéis. Já está a haver um excesso.
Mas não há quem pense transversalmente a região.
A região demarcada não tem a sua cabeça. A Companhia não existe, a Casa do Douro está como está, o instituto não é o negócio dele, as autarquias não se entendem, as cooperativas idem, aliás três ou quatro já fecharam. Falta uma centralidade no Douro, falta um porta-voz, que pode ser uma pessoa ou uma instituição. Poderia ter sido a Casa do Douro, há 30 anos ou 40, mas perdeu-se essa oportunidade. Se tivesse isso, a lavoura tinha mais força, a região tinha mais força no país.
No desenvolvimento da viticultura e das escolhas das castas não houve um certo deslumbramento novo-rico, que esqueceu a tradição e o saber de três séculos da região?
Houve exactamente isso, uma facilidade de se pensar que se for tudo Touriga é melhor. Simplesmente, há dez anos, houve umas pessoas, como o Dirk Niepoort, que eu vi fazer um verdadeiro comício a dizer ‘não arranquem as vinhas velhas’, como o António Magalhães, os Roquettes do Crasto e de repente eu sinto que hoje quem tem vinhas velhas está a ganhar mais do que quem tem vinhas novas. Quem quer vinhos melhores vai às vinhas velhas. Creio que ai tem havido uma espécie de reacção que veio espontaneamente e que mexe com os interesses. Se eu der conta que o meu vinho melhora com vinhas velhas, eu não arranco as vinhas velhas.
Está a haver um retrocesso?
Sim. A maneira como se começou de repente a falar do terroir é sinal que já se percebeu que eles perceberam. Que cada vinho tem de ter o seu sítio as suas tradições a sua cultura. A mensagem está a chegar.
O Douro, que é a maior área de vinha de montanha do mundo, não é um chapéu demasiado grande para abarcar terroirs muito diferentes entre si. Faz sentido que haja novas sub-denominações de origem, como na Borgonha?
Ou em Bordéus. Eu admito que sim. Eu gostaria. Faria todo o sentido que duas, três, quatro ou cinco microregiões pudessem ter a sua personalidade própria, o seu próprio nome. Acho que estarem ligadas ao Douro é bom. Eu não tenho competência suficiente para poder dizer quantas e quais seriam as vantagens, mas estou convencido que se o Douro fosse mais complexo na sua maneira de se apresentar ao mundo e que a sua complexidade fosse visível e reconhecida, que se percebesse que beber um vinho do Douro Superior é beber um vinho diferente do Baixo Corgo, com condições climáticas diferentes, e acho que se se isto tudo tivesse um nome, cada um ficava a ganhar. Mas uma vez mais tem de haver sensatez nisto. Estou mesmo a ver aparecerem 45 sub-regiões, mais que os municípios, cada município queria ter a sua, cada quinta queria ter a sua.
Desde a primeira edição do seu livro até esta, tende a concordar com a afirmação de que o que correu melhor no Douro foi a melhoria qualidade dos vinhos do Porto?
Acho que sim. Há vinho do Porto pior do que há 30 anos. Baratíssimo. Já vi em Inglaterra ou na Holanda vinhos do Porto a dois euros. Impensável. Agora se formos aos Colheitas, aos bons Tawnies, aos Vintage, que em Portugal não se consumiam a situação é diferente. Em Portugal aprendeu-se a beber Colheitas, que é um vinho excelente, o Vintage foi considerado, o melhor, o príncipe dos vinhos, mas há vinhos de Tawnies, há vinhos de 20, ou 30 anos que são muito bons.
Que categoria prefere?
Eu não tenho preferência. Agora estou há dois anos, talvez, em que bebo sobretudo Colheitas. Há 15 anos ou há 30 anos quando comecei a descobrir mesmo o Vintage achei que era o melhor vinho do mundo. Tinha um vício terrível, gostava Vintage com três ou quatro anos, quase acabado de fazer. Até se inventou em Portugal aquela coisa horrível que era pedofilia beber vinhos com três ou quatro anos. E aquele vinho cru, acabado de fazer, tem qualquer coisa de interessante. Passei anos em que praticamente só bebia Vintage. Até às refeições, às vezes. Depois gradualmente comecei a dosear e descobri os 10, 20, 30, 40 anos, e depois os colheitas com data, que se são bem feitos, caramba, é muito bom.
Que anos prefere?
1994, 1983. Depois os grandes clássicos, o de 45, de 63, de 27. São vinhos fantásticos.
Partilha da visão dos que acham o Douro anda não consegue ter uma identidade nos seus vinhos de mesa como têm os grandes Bordéus ou os grande Borgonhas?
Acho que sim. Mas é relativamente simples. Estamos a pôr 25 anos de DOC com 200 anos de Borgonha ou de Bordéus. É cedo. A região é vasta de mais, os climas e os solos são muito diferentes de sítio para sítio. Você tem o Crasto, depois o Vale da Raposa, a Gaivosa, depois o Vallado, o Vale Meão, depois tem o Duorum ou agora o Xisto, os Batuta e os Charme e diz, ó diabo, isto não é o mesmo vinho. Depois tem os Batuta e os Charme, uns vinhos a fugir para os Borgonha, outros a fugir para o Bordéus. Isto tem de começar a estabilizar ou tem de se começar a desenhar, de fazer a configuração do que são as regiões e os tipos de vinho.
Há 20 anos atrás quando escreveu o seu livro não imaginava que os DOC Douro tivessem a importância que têm hoje.
Eu dizia nessa altura, ‘estão a surgir’, ‘começaram a surgir’. Do que falava? Do Duas Quintas e mais dois ou três. Eu estive 12 anos fora de Portugal, cheguei em 1974, e comecei a andar à procura de vinho. Tinha estado 12 anos a beber vinho francês ou italiano na Suíça. E em Portugal não havia praticamente garrafas de vinho. O branco era geralmente um desastre, mal feito, oxidado, um desastre.
E quando pedia tintos do Douro ainda me lembro do que aparecia. A frasqueira Lello, da Borges, o Granton, da Companhia, da Evel, também da Companhia, depois apareceu o Porca de Murça, que era uma ‘grande pomada’ como se costumava dizer. E no Douro não havia mais nada. Havia o Barca Velha, que era intocável, mas nessa altura só tinha havido quatro ou cinco colheitas. Todos os nomes de vinho que agora se fala têm menos de 20 anos. O Vale Meão, o Redoma, o Vallado tudo isso tem 15 anos, 10 anos.
Houve uma alteração enorme, enorme. Quase toda esta gente ou tem filhos que fizeram enologia em Vila Real, ou foram estudar agronomia com o Magalhães [Nuno Magalhães, professor e investigador da UTAD], ou alugam serviços de enólogos, até estrangeiros vêm - a Casa Amarela tem um francês, há a fantástica espanhola, a Susana Esteban... Toda esta gente agora tem enólogos e engenheiros de viticultura e sem isto não tinha havido esta mudança.
Essa capacidade de importar talento está mais associada ao DOC Douro do que do vinho do Porto?
A genica toda está do lado do DOC Douro. A genica, a força, a energia, a invenção, o esforço comercial está tudo do lado do DOC Douro. Em muitos casos o litro de DOC bom pode ser superior ao litro do Porto.
A prazo isso pode ter consequências negativas. O DOC Douro tem toda a genica, mas o Porto ainda representa 75% das receitas da região.
Eu não quero enfraquecer o vinho do Porto. Quero fortalecer o DOC. Se para fortalecer o DOC eu enfraqueço o Porto, por uma razão qualquer, estou a estragar tudo. Se o vinho do Porto tem solidez é uma solidez discutível, porque a concentração empresarial económica e financeira do vinho do Porto é excessiva e a falta de protagonismo dos produtores é excessiva também. Mas não quero correr o risco de enfraquecer o vinho do Porto para poder enriquecer o DOC. Agora tenho na minha cabeça, primeiro, que o Porto já teve uma ou duas crises gravíssimas ao longo destes 100 ou 200 anos e não pode ter mais – bom, Portugal também tem tido sucessivamente uma crise.
O seu livro é mais do que uma reedição. Há muitas coisas novas e diferentes.
Nos primeiros capítulos houve apenas uns retoques. Eu tentei ser honesto dizendo que este livro é o mesmo mas que este livro não é o mesmo.
O Douro mudou muito. E a sua visão sobre o Douro mudou em quê? Teve alguma revelação nestes 20 anos?
Houve algumas boas, outras más. Quanto às más, há 20 anos eu julgava que havia mais força no Douro. Ainda hoje vai ler a literatura local, os jornais locais e sente-se que o duriense está sempre a ferver, o duriense está sempre a queixar-se. E sente-se que havia ali qualquer coisa.
Eu pensava há 30 anos que essa energia era positiva, que poderia levar à associação, à convergência, à concentração de esforços e ao protagonismo, e não levou. Também tinha a sensação que era possível quebrar a monocultura, e não se conseguiu. O turismo é a única coisa nova que há, mas este tipo de turismo tem o inconveniente de ser um turismo que passa.
Tenho amigos que dizem que dormem no barco, comem no barco, bebem do barco e não saem cá para fora. Eu digo, é verdade, mas acrescento, façam coisas suficientes para atrair as pessoas. Tenham cultura, sítios, museus, para as atrair.
Uma obra obrigatória para conhecer o Douro… e o país
Nenhuma região do país foi capaz de dar origem a tanta bibliografia como o Douro. Desde o século XVIII que portugueses e ingleses, viticultores e exportadores, geógrafos padres ou políticos se dedicam a fazer retratos, denúncias, queixas ou propostas sobre uma região cujos vinhos foram tanto causa de riqueza como de miséria, de euforia ou de revolta, de tratados internacionais como de acordos internos ao sabor do equilíbrio de poderes.
Nos últimos anos, como desde sempre, essa torrente de ensaios, estudos, relatórios ou romances nunca se interrompeu – pelo contrário, a obra do historiador Gaspar Martins Pereira e do Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense da Faculdade de Letras da Universidade do Porto produziram uma verdadeira revolução no conhecimento histórico dos três séculos e meio de aventura duriense. Mas é fácil concordar com Gaspar Martins Pereira quando ele afirma que “Douro, Rio, Gentes e Vinho” que António Barreto revisitou este ano (a primeira edição é de 1992) seja “o mais belo livro alguma vez publicado sobre o Douro”.
O grande trunfo de Barreto é o domínio de disciplinas tão vastas e díspares como a história, a economia, a demografia, a enologia ou a viticultura. E o seu maior mérito é a sua capacidade de as cruzar para produzir um quadro evolutivo e coerente de uma região desde os primórdios da aventura exportadora do vinho do Porto.
O saber de António Barreto sobre o Douro leva-nos a acreditar na existência da inteligência emocional. Não há nenhum autor contemporâneo capaz de produzir a síntese que o seu livro consegue. Porque não se trata apenas de uma síntese baseada na reflexão e no conhecimento: há em cada analogia, em cada parágrafo uma evidente prova de emoção. Na beleza da escrita, na análise da História ou na descrição da paisagem, Barreto revela-se como um duriense que sabe porque gosta e quer saber do que sabe.
Numa região e num vinho marcado pelo confronto de interesses e paixões, é fácil cair no maniqueísmo e sublinhar uma ou outra face dos conflitos entre Douro e Gaia, pequenos e grandes agricultores, do Baixo Corgo ou do Douro Superior. Barreto não nega o lado da sua “barricada” e revela na sua leitura da região maiores preocupações sobre o estado da economia ou da dinâmica associativa do Douro. “Quase 20 anos de formidável expansão do seu principal produto não criaram, na região, riqueza, oportunidades, emprego e prosperidade suficientes para inverter a desertificação. A verdade é que, uma vez mais na História, os principais benefícios foram para fora do Douro”.
Mas a sua análise do Douro não segue os cânones da guerra dos mundos. Para ele o Douro é um lugar de encontro. De transmontanos e galegos com ingleses, de pequenos agricultores com capitalistas voltados para o mercado mundial, de interesses locais com os interesses do Estado.
Sem deixar de desafiar o leitor com as suas percepções e a sua interpretação da história ou do presente, António Barreto preocupa-se em explicar o que é o Douro e por que razão o Douro contemporâneo é o cúmulo de um caminho secular. Fá-lo com a sua escrita directa, acutilante e clara, com o testemunho da sua emoção, com o rigor de quem sabe que o Douro só se conhece (e ama) se for percebido como uma obra do génio humano.
“Para fazer o seu vinho, os homens do Douro lutaram contra a natureza. Com amor e ódio, como nas paixões. Fundiram-se com ela, esposaram-na, dominaram-na e por ela foram dominados. Das encostas, fizeram degraus e escadarias; da rocha, terra e jardim; do calor e da secura, vinho e açúcar. Lutaram contra a doença, a filoxera das videiras e o paludismo dos homens, como combateram contra a geada e o granizo. E lutaram finalmente entre si e contra os outros. E, como sempre na vida, lutaram especialmente contra a injustiça e o desprezo”, escreve.
Para lá da beleza e do saber do texto que por si só tornam a revisitação de Douro (que, nesta edição, conta com um capítulo integralmente novo, “20 anos depois”), o livro de António Barreto vale também como um álbum de fotografia, que resulta de um trabalho minucioso e competente de Ângela Camila Castelo-Branco. Gaspar Martins Pereira, que fez a apresentação do livro no Porto, considera que “António Barreto reúne aqui o mais fabuloso portfólio fotográfico alguma vez publicado num livro sobre o Douro. São cerca de 230 fotografias, mais de 150 da sua autoria, as outras de arquivo, algumas delas inéditas, de fotógrafos como Forrester, Emílio Biel, Domingos Alvão, Álvaro de Azevedo e outros”.
Pelas palavras ou pela imagem, Douro é uma obra indispensável para se perceber o mundo do Douro e dos seus vinhos e para entender como a produção duriense foi um tema constante na história nacional durante quase dois séculos (meados do século XVIII até por volta dos anos de 1960). Mas mesmo que fosse possível dispensar a valia da sua informação, o livro valeria por si só apenas pela maravilha da sua escrita.
Barreto é, sem dúvida, um dos melhores cultores da língua nos dias que correm. O ritmo das palavras, a cadência das frases ou a inteligência no encadeamento da narrativa proporcionam ao leitor um enorme prazer. Até por isso Douro é um dos acontecimentos do mundo editorial português dos últimos meses.
Fonte: http://fugas.publico.pt/Vinhos/341789_a-genica-a-forca-a-energia-a-invencao-esta-tudo-do-lado-dos-doc-douro
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