DEGRAUS DO PASSADO
Corria
ensolarado o mês de Maio de 1973. Leonor, apressada, corria também da Faculdade
para o Colégio. De manhã era aluna, pela tarde, professora. O companheiro
terminava o curso de Direito na Clássica, os escritórios da TAP pagavam-lhe um
parco ordenado de subsistência. Vinte e dois anos, grávida de dois meses, a
jovem mulher, casada de fresco, deitara mãos ao trabalho, liberdade não é
dependência dos pais.
Almoço no bar da cantina, corria para o
autocarro 35, que seguia ronceiro entre Sapadores e o Hospital de Santa Maria.
Leonor descia em frente ao Técnico, logo no início da Alameda, era assim desde
Outubro passado, quando aluna, professora e quase-mãe, tinham começado as
aulas. O mistério de três pessoas numa só verdadeira.
Sorriu ao lembrar-se da infância protegida, da
madrinha catequista:
–
Quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
– Três,
madrinha: o Pai, o Filho e a Pomba.
Sorriso maroto da menina, gargalhada estancada
à pressa da madrinha catequista, esta menina é um mafarrico, pensou.
– Então, são três pessoas e são três deuses,
não é verdade? Interroga a madrinha catequista, não para examinar a criança em
matéria de fé, apenas para ver o que dali saía … e logo o mafarrico galhofeiro:
– Ah! Ah! Isso é que era bom! Se fossem três
pessoas e três deuses, lá ia o mistério de patas ao ar!
A jovem
mulher continua a sorrir lembrando a criança que foi. Conserva dela a garridice
e sobretudo a vocação para o protesto. Naquele dia, mal conseguira engolir o
almoço, os enjoos matinais duravam até tarde, a médica Cesina Bermudes
dizia-lhe que iam passar depois dos três meses. Acolheram-se mutuamente num
sorriso cúmplice desde a primeira consulta, na Rua Santos Dumont. Cesina
Bermudes fora a primeira mulher doutorada em Medicina em Portugal, corria o ano
de 1947, e logo em 1949 participara activamente nas eleições do Norton de
Matos. Expulsa da Faculdade de Medicina, a nota de dezanove do doutoramento não
fora suficiente para lhe compensar as ideias subversivas. A jovem médica não
demorou a ser presa. Estava no Aljube quando, no ano seguinte, Leonor nasceu.
Proibida de exercer a profissão nos Hospitais
Civis, Cesina Bermudes ajudava as crianças a virem ao mundo na Clínica Cabral
Sacadura, propriedade de gente abastada, uma casa cor-de-rosa junto ao metro do
Parque, onde as mulheres controlavam como podiam as contracções, graças ao
parto sem dor, que Cesina Bermudes introduzira em Portugal.
Leonor confiava na médica mais do que em si
mesma. Ela acalmava-lhe o medo, lembrança reminiscente do parto complicado, o
cordão enrolado à volta do pescoço, nascera quase morta, a mãe contava: - O
médico disse, que pena, é uma menina morta! Mas um som estridente quebrou o
silêncio de chumbo e o pai aliviado do susto a rir, a rir muito: - Para morta
ainda grita muito bem!
Nunca mais se calou. Aos oito anos fez a sua
primeira revolução na escola primária. A professora, informadora da PIDE,
soube-o mais tarde, defendia e praticava o método pedagógico da reguada a torto
e a direito. Quem tivesse mais de dois erros no ditado podia preparar as
mãozitas que muitas vezes nem chegavam a desinchar de uns dias para os outros.
Como as da Zé, a sua melhor amiga, o bombo da festa, que nunca acertava com os
“SS” e o “Ç”. A companheira de carteira de Leonor era a Fernandinha, filha da professora,
que dava erros como a mãe dava reguadas. Mas não nas mãos dela. Oito erros,
contou Leonor nesse dia no caderno de capa amarela da Fernandinha, que a mãe
rapidamente escondeu na gaveta da secretária para lhe poupar as mãos de seis
reguadas. Não podia ser! Aquilo tinha de acabar! De hoje não passa! - pensava a
pequena Leonor. E, se bem pensou, melhor o fez. Chegou a hora do recreio. A Zé
esfregava as mãos doridas das reguadas e a Fernandinha esfregava-as de
contente. Leonor aproveitou a ausência da professora que fora tomar o
costumeiro café, esgueirou-se para dentro da sala e certificou-se: oito erros,
sim senhora, marcados a vermelho com uma grande roda à volta!
Entraram de novo para a sala de aula. Antes
que o diabo esfregasse um olho, Leonor abria a gaveta da secretária e tirava de
lá a prova do crime.
– Ponha já isso no lugar! – grita-lhe a
professora com olhar fulminante.
– Não ponho nada! – gritava também Leonor a
plenos pulmões e brandia, possessa, o caderno de capa amarela.
A professora avança então para Leonor de mão
no ar. Não conseguiu baixá-la, porque já Leonor saltava para cima de uma
cadeira, e gesticulava em fúria:
– Vou contar tudo ao meu pai! Vou contar tudo!
Ele vai acusá-la ao inspector! Bate nas outras e não bate na sua filha! Vou
contar! Vou contar! – gritava a pequena
Pasionaria de cabelo desgrenhado, laçarote a desfazer-se.
A professora abriu os olhos e as narinas de
raiva:
– Desça já daí imediatamente!
Leonor fuzilou-a com os olhos, desceu e correu
porta fora com o caderno amarelo na mão. Chegou a casa esbaforida e mostrou-o
ao pai. Na semana seguinte a professora recebeu um telefonema do inspector
escolar e as mãos da Zé finalmente conseguiram desinchar.
Estava
quase na hora marcada para o meeting de protesto contra os estudantes presos. A
cantina ia enchendo aos poucos. Do alto da parede da sala de convívio pendiam
grandes cartazes com a longa lista de nomes
dos estudantes presos. Liberdade! Liberdade! E a palavra não passava de
palavra escrita no cartaz. Que pena não poder ficar para o meeting, pensou
Leonor, mas a aula de Francês sobre o Micromégas esperava-a no Colégio. Nesse
tempo ainda se aprendia língua e literatura francesa no ensino secundário.
Passo apressado, Leonor olha o relógio, cinco
minutos para apanhar o autocarro 35. À saída do refeitório, trava-lhe o passo a
Rita, colega nas aulas de Latim:
–
Leonor, hoje faltei à aula. Emprestas-me a tradução?
– Amanhã falamos, vou dar aula, não posso
perder o autocarro, respondeu Leonor, e nem parou. Rita faz uma cara de poucos
amigos, paciência, pensou Leonor, levanta-se tarde, não põe os pés nas aulas,
anda na rambóia pela noite fora. Espere até amanhã, se quiser. Aos vinte e
quatro anos continuava a ser sustentada pelos pais, sabia lá a Rita o que era
estudar e dar aulas ao mesmo tempo, uma criança a caminho, as consultas, as
compras, a comida, a casa para arrumar. Dinheiro contado, o que valia era a
cantina, 8$00 o almoço. Na semana anterior, de boicote às aulas, exigindo a
libertação dos colegas presos, a menina Rita já conseguiu levantar-se cedo,
para furar a greve, pois claro.
Os
estudantes vão-se concentrando para o meeting, desde a sala de convívio até à
porta da entrada onde os porteiros, em vão, fazem esforços para arredar os
jovens.
– Saiam daqui! Tenham paciência! Cumprimos
ordens!
Já
defronte à porta envidraçada, Leonor vê as tais ordens aproximarem-se, ordens
fardadas, de viseira transparente caída, armas em riste. A jovem mulher não tem
tempo para pensar, o coração aos pulos, faz uma fuga em frente, precipita-se
pela escada abaixo, assusta-se com o estrondo de uma bala atirada para a
bandeira da porta. Escorrega-lhe uma sandália, desequilibra-se e rola até ao
fundo da escada. Ouvem-se gritos, canalhas, fascistas, assassinos! Alguns
estudantes, que os porteiros não conseguiram arredar, ficaram feridos pelos
estilhaços dos vidros. Mas nesse dia ninguém morreu. A poeira misturada com o
sangue dos arranhões no braço, nos joelhos, conspurcam a brancura do vestido.
Voltaire e o Micromégas, tiveram de esperar para outro dia.
Leonor
está agora na Rua Santos Dumont, a
médica entrecorta o discurso: -
Fascistas! Fascistas! Desta vez não foi nada, mas podias ter perdido a criança!
Oh, se podias! Quando é que conseguiremos correr com esta corja?!
São
oito da manhã do dia 25 de Abril de 1974. Leonor acabou de dar banho à filha, a
papa espalhada por todo o lado. Mudou-lhe a fralda, meteu-a no carrinho para a
deixar no infantário, antes de seguir para as aulas, na Faculdade.
Toque
estridente da campainha. Era a Dona Angelina, a vizinha do lado:
– Menina Leonor, tem o rádio ligado?
Não tinha. Não sabia de nada, não senhora.
– Está
uma revolução na rua! Sabe-se lá o que virá aí!
– Pior
do que já temos não pode vir! Olhe que não pode, não, Dona Angelina!
–
Sabe-se lá, menina Leonor! Sabe-se lá! Ele há coisas…
A
vizinha atravessou o patamar pouco confiante: - Estes estudantes são sempre
contra o governo, sabe-se lá, se esta Leonor estudante e professora será também
de confiança! Simpática ela é, sim senhora, e prestável, por mais de uma vez me
ajudou a trazer os sacos das compras da loja ali em frente. Mas se for
política, cruz credo, Deus me livre e guarde! E benzia-se, invocando Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro. Vêem-se caras, não se vêem corações, Dona Angelina
franzia o sobrolho enquanto dava duas voltas à chave, não fosse o diabo
tecê-las, e a revolução entrar-lhe de portas adentro. Sabe-se lá!
Leonor
liga o rádio, “posto de comando das Forças Armadas”, e o coração enche-se de
esperança. Chegou ao infantário e deu com o nariz na porta. Um letreiro dizia:
«Encerrado por segurança.» Voltou para casa. Viu as imagens do Carmo na
televisão, avistou o companheiro em cima de uma árvore, olha o pai, olha o pai…
O pai à noite chegou cansado.
– Conta lá, conta lá, tive de ficar aqui em
casa todo o santo dia, o infantário fechado, a menina a pedir colo num berreiro
desatado!
Seis
dias depois, Leonor embrulhou a filha num xaile traçado entre a cintura e os
ombros, e levou-a à manifestação do 1º de Maio. Para se habituar à Liberdade,
pensou. A criança não chorava nem tinha medo da vozearia dos altifalantes.
Fixava os olhos muito abertos ora nas bandeiras vermelhas, agitadas pelo vento
da esperança, ora nos cartazes que não podia ler: «O povo já não tem medo!»,
«Fascismo nunca mais!», «25 de Abril sempre!»
Passaram velozes quarenta anos na vida de
Leonor. Traz ainda a pasta pesada de livros, mas já vazia de sonhos.
Reformou-se de professora, mas continua a trabalhar graciosamente (estranha
palavra!) no Centro de Investigação da Faculdade. Nada do que faz poderá ser
remunerado. A legislação é clara para ela, bem menos clara para altos
funcionários do governo. Dá-lhe um nó no estômago saber que prescreveu a coima
do Banco de Portugal ao grupo de fiéis seguidores do beatífico Jardim
Gonçalves, locupletado com a choruda reforma de cento e setenta e cinco mil
euros, tenho de escrever por extenso, não vá alguém julgar que me enganei nos
números. Quem confiou nele é que foi enganado. Um escândalo num país de pobreza galopante, mas
de memória curta. Austeridade, antiga palavra de conventos, é agora a medida
por onde se apertam os cintos. Avizinham-se mais cortes nas pensões, ouviu-se o
veredicto a sair do sorriso Pepsodent, já algo embotado, daquele rapaz,
primeiro-ministro que tinha dez anos no 25 de Abril e que não conheceu a
miséria salazarenta. Leonor conhece o pai dele - médico, escritor, transmontano
de boa cepa -, o filho não lhe herdou as qualidades. Hélas!
Vai
agora apanhar o metro na Cidade Universitária; avista ao longe, os doze degraus
da cantina. Esses continuam sólidos. Leonor fecha os olhos e vê o vulto do
passado a rolar na escada.
Teresa Martins Marques
Abril – 40 Anos
Âncora Editora / Associação Portuguesa de Autores
Nota da Direcção
Quis a Associação Portuguesa de Escritores evocar os 40 anos do 25 de Abril, dia e projecto, tempo e realizações, memória e devir. Um tributo plural, nascido da liberdade de pensamento e criação, capaz de convocar testemunhos, análises, instâncias do júbilo ou da revolta, a palavra sem grilhetas que só a democracia assegura.
Para o efeito foram convidados todos os sócios. Reúnem neste lugar as múltiplas vozes, tal como chegaram, à margem até de critérios editoriais que noutras circunstâncias seriam adequados. Poesia, ficção, ensaio, teatro, escrita biográfica, entre mais registos, conjugam-se aqui, segundo escolha de cada autor, celebrando uma efeméride que, pelos sulcos deixados na sociedade portuguesa, é História, legitimação, estímulo e luz acendendo-se além da treva.
Os conteúdos que integram o presente volume, tão diversos, responsabilizam apenas quem os subscreve, assumindo uma dimensão especular que não será indiferente aos leitores.
Agradecendo a quantos tornaram possível o empreendimento, entre eles António Baptista Lopes e a “Âncora” pela cooperação entusiástica, a APE depõe nas mãos dos seus membros e do público este momento medular da sua intervenção cultural.
A Direcção
Autores:
A. do Carmo Reis
Adelaide Graça
Adriano Augusto da Costa Filho
Afonso Cruz
Alfredo Luís Oliveira Luz
Álvaro de Oliveira
Amadeu Baptista
Andrade Santos
Anto Affonso
António Augusto Menano
António José Borges
António José Fernandes
António José Santos Branco
António Sá
António Souto
Armando Cardoso
Augusto Deodato Guerreiro
Aurelino Costa
Carlos Brito
Carlos Vale Ferraz
Cláudio Lima
Conceição Oliveira
Cristino Cortes
Domingos Lobo
Eduardo Águaboa
Eduardo Olímpio
Fátima Pitta Dionísio
Fernando Bento Gomes
Fernando Grade
Fernando Miguel Bernardes
Fernando Morais
Fernando Rovira
Francisco do Ó Pacheco
Graça Pires
Gracinda Sousa
Hélia Correia
Henrique Garcia Pereira
Henrique Madeira
Isabel Antunes
Isabel Rainha
Jacinto Rego de Almeida
João Alves da Costa
João Apóstolo
João Pedro Mésseder
João Rasteiro
João Rui de Sousa
Joaquim Murale
José Correia Tavares
José do Carmo Francisco
José Emílio-Nelson
José Miguel Noras
José Rodrigues Dias
José Viale Moutinho
Júlia Nery
Julieta Monginho
Liberto Cruz
Luis Eugénio Ferreira
Luís Graça
Luís Souta
Luís Vendeirinho
Luís Vieira da Mota
Luísa Ducla Soares
Manuel dos Santos Serra
Manuel Fortuna Martins
Manuel Frias Martins
Manuel Simões
Maria Alcina Adriano
Maria do Céu Silva
Maria do Sameiro Barroso
Maria Toscano
Maria Virgínia Monteiro
Mário de Carvalho
Marta Fialho
Miguel Barbosa
Miguel Raimundo
Miguel Real
Nicolau Saião
Nuno Vicente
Orlando Soares
Paulo Jorge Brito e Abreu
Paulo Sucena
Pires de Sousa
Rogério Pires de Carvalho
Rui Carlos Souto
Sérgio de Sousa
Teresa Martins Marques
Vergílio Alberto Vieira
Vítor-Luís Grilo
Zélia Chamusca
Zulmira Bento
"Reformou-se de professora,mas continua a trabalhar graciosamente no Centro de Investigação da Faculdade"e ... é a autora de "A mulher que venceu Don Juan",não é verdade,Teresa Martins Marques?
ResponderEliminarTexto admirável,que se lê de um fôlego, ,tal como o romance.Parabéns,Teresa!
Uma moncorvense
Ana Diogo Maravilhoso texto! 'Leonor' irreverente e sempre sedenta de justiça! Tal como a autora do texto...
ResponderEliminarObg, Lelo Demoncorvo. Esta nova página é uma pérola no seu blog
Maria Leontina Trigo Fernandes :
ResponderEliminarGostei muito Teresa. Como tb me revejo e a si, nesses tempos...!!! Um belíssimo auto retrato...,a Leonor! Apesar de tudo, sinto saudades! Um abraço.
Texto de rigor ,cheio de vida,autêntico.Vida vivida passa a bela prosa.Um escritor tem que viver para enriquecer a sua escrita.A ficção é uma variante da realidade,uma tradução livre.Como gostei deste texto.
ResponderEliminarLeitor
Parabéns, Teresa. Um texto soberbo ! Uma vida extraordinária !
ResponderEliminarO Blog está enriquecido.
O Lelo também está de parabéns.
Abraços
Júlia
mais um belo texto publicado no nosso blog.Parabéns à autora e aos administradores do blog.
ResponderEliminarAdalberto j.