MATRIZ COM "M" DE MEMÓRIA
Durante o sonho dos homens, a Terra não dorme.
Dá muitas voltas consigo mesma. Em tempos de que não há memória, os planaltos
mudaram de Lugar, as montanhas afastaram-se dos mares, os vales convidaram rios
a passar. Quando se acalmou, o corpo feito terra, água, fogo e ar, fez-se
também abrigo. Os homens guardaram-se das intempéries e dos animais. Desenharam
espaços, dividiram lugares, levantaram paredes. Para se protegerem de outros
homens, para se encontrarem com deuses. Muros para o corpo, desenhos para a
alma. Nada nasceu do nada. Lugares, formas e gestos nasceram por necessidade,
por desejo, por determinação. Por isso, cada memória traz consigo muitas
outras, entrelaçadas. Nas nossas viagens cabe a terra toda. Na nossa memória
cabe o mundo inteiro. No nosso mapa liga-se o conhecido e o desconhecido, à
espera de oportunidade. Chegámos a Freixo de Espada à Cinta, onde a terra
parece estar mais perto do sol e o rio brinca às escondidas com as montanhas,
sem pressa de chegar ao mar. Vimos igrejas-salão na Alemanha, em França, na
Inglaterra. Em Portugal, o Mosteiro dos Jerónimos e o Convento de Jesus em
Setúbal. Ver uma coisa é ver e saber outras. E é preciso fechar os olhos a tudo
o que vemos de igual ou parecido, para melhor ver o irrepetível. Cada lugar é
único, tal como cada rosto. Para conhecer o templo de São Miguel Arcanjo é
preciso ouvir, ver e sentir, dentro e fora de portas. Sentir este e o outro
lado das paredes. É que a fé dos homens é uma só e distribui-se pela terra,
pelos frutos, pelas mãos, pelas palavras, por Deus. Alguém com ar de quem
atravessou todos os séculos diz que as coisas são como são, que sabemos apenas
o que sabemos e pronto. Alguém que nos leva a ver muito mais do que poderíamos
imaginar.
EMÍLIO REMELHE
Fonte: "ONDE NADA SE REPETE" - crónicas à volta do património. (excerto)
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