Rogério Rodrigues e Amadeu Ferreira |
A decorrer na Poética, um momento único e contagiante que partilhamos convosco: a fluidez da conversa enriquecida por uma vida de entrega à cultura, a simplicidade só acessível aos homens grandes de pensamento. A seguir, sessão de leitura de poemas.
Registado fica aqui o texto de apresentação da obra "Ars Vivendi Ars Moriendi" do jornalista Rogério Rodrigues.
Trabalhos e os deuses com que
Fracisco Niebro nos abre o coração do livro
de poemas que hoje estamos aqui a apresentar são também os
trabalhos de Amadeu Ferreira, entre o desespero
de Orfeu e a sua melodia da morte. Mas não
consagra os deuses, donos do capricho e da infinita maldade que não castiga ou
mesmo protege os iníquos e castiga ou não protege os justos. A poesia de Niebro
enaltece os justos, já que a poesia ainda não tem poder de castigar os iníquos,
muito embora o poeta diga que a poesia é mais do que a literatura. E é verdade.
Reservando-nos do sagrado, falemos, pois, da morte.
Como diz o autor, “os jazigos
como as campas são feitos para os vivos e não para os mortos”, reflexão
certeira .
Mas o autor não se conforma e clama “estão
vivos os meus mortos (…) eu nunca os deixarei morrer todo o tempo que viva”.
Após introdução tão fúnebre,
é altura de mergulhar com a pequenez que me compete, no espaço poético de
Niebro, prenhe de uma profunda espiritualidade, mas pagã, quase panteísta.
O Planalto, escrito em caixa
alta ( em maiúscula no jargão jornalístico) como espaço sagrado, cuja
intemporalidade desafia o tempo medido em meses (caixa baixa), aprisionado nos
dias e limitado por nomes, como se o tempo na sua infinitude necessitasse de
nomes que não fossem os nossos,
o Planalto é a sua Mátria, o
poema por excelência à volta do qual gira e subverte toda a sua poesia.
E no Planalto revisita lugres
sagrados como os castelos de Outeiro e Algoso, este já tema de um conto de
Rebelo da Silva, a propósito de uma noiva forçada que se lança das
muralhas para fugir a um tirano que será
castigado por D.Pedro I que andava então por terras de Miranda. Ouçamos o
autor, comovido não só pela paisagem mas angustiado pela condição humana.
Escreve Niebro: “ se te encostares às muralhas ouvirás o respirar/ esfomeado
dos que um dias as pedras levaram/ e colocaram ou se esmagaram fragaredo
abaixo:/a sua língua/ é a de sempre para
a dor humana”.
Há um amor oculto nestes
poemas que o pudor de Niebro não permite mais, ainda que por vezes, num gesto
de indignação, dê azo a um linguajar vicentino que combate o lirismo,
dispensada a metáfora ou o eufemismo, ou então a afirmações de arrojo como a
tirania erótica do adjectivo, não a tirania do erotismo místico de Santa Teresa
d’Ávila nem o erotismo carnal de Ovídio, mas antes a tirania erótica do
adjectivo da terra fumegante em todos os seus aromas e cores.
Ars Vivendi, Ars Moriendi não
é de fácil leitura se estivermos acomodados ao efémero e, porventura, supérfluo,
da palavra e dos temas datados, que sendo urbanos são por vezes provincianos,
enquanto a poesia de Niebro, alimentando as suas raízes na ruralidade, é
universal e consubstancia o tempo da vida dele e na vida de cada um.
Solicita o leitor para um
conhecimento mais sustentado dos clássicos como Horácio, Hesíodo, Catulo, entre
outros, que é da terra que tudo nasce e na terra tudo se transforma.
Muitas das palavras, das
imagens e dos jogos com que Niebro nos alimenta o prazer e quase nos convida à
plenitude do regresso de que já nos esquecêramos, mas com inquietações ainda
não cicatrizadas, é como que a
playstation da infância de muitos de nós, por certo de alguns aqui presentes.
O Ars Vivendi, o doloroso
ofício de viver pavesiano, transporta-nos para a dualidade em que o Niebro/Amadeu
está envolvido.
Como ele escreve: “talvez um
dia posse ser/como a cegonha/repartir/o ano entre duas pátrias/ e voar sempre
entre elas/num sereno regresso a casa//.
De um lado, a cidade, “longe, longe era a
cidade”, a um quotidiano feito de constrangimentos, de finanças e pobreza
exposta, que se esgota e degrada nas trevas de um espaço, desabrigado e
desumanizado, também feito de ausência de solidariedade vicinal. Como escreve o
poeta:
“do outro lado, uma vitrina,
Uma televisão fala de
impostos
E da crise: dá-me esta Lisboa
Um absurdo desejo de sofrer.
Estou a passar na Estefânia, ao
lado do
Jardim Cesário Verde e
sorrio…
Escreve ainda o poeta: “onde
encontrar o remédio para estes financeiros/dias/ em que até a sombra e o
respirar me doem?”
Do outro lado, o olhar
luminoso sobre o espaço em que sendo pobre, não abdicava da felicidade dos
simples e das coisas simples, das minudências tão importantes que ultrapassam
os limites do efémero.
É com prazer, mais de que
nostalgia, cuja intensidade me perturba quando me faz regressar ao voo das
andorinhas, ao entardecer ( uma visão também de leitura adolescente do poema
introdutório à Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro), aos regos da horta
com fios de água silenciosos, mas que fazem ruídos na memoria, a enxertia, as
castanhas e o seu ouriço agreste, como agreste é a vida, mas o Fracisco Niebro
qual zimbro a solidificar as terras das arribas, está-nos sempre a avisar, ao
jeito de um Horácio tardio: por favor sejam felizes e gozem do dia de cada dia.
O que é mais perturbante na
poesia de Niebro é o que pode parecer um
paradoxo ou uma angústia kierkgaardiana. Seja: está sempre a regressar sem
nunca ter partido.
Voltando à cidade, assistimos
a um estimulante frente a frente entre Alberto Caeiro ( Fracisco Niebro/Amadeu
Ferreira) sendinês e jurista de mercados
e Álvaro de Campos, engenheiro naval (Fernando Pessoa) a propósito de um
dia de anos.
Na infância dos pobres, nas
aldeias do interior agreste, não se celebrava nem a pobreza (que mesmo sendo
digna, não é digna de celebração), nem os anos porque no interior da nossa
infância celebrávamos os ciclos da terra, o tempo das colheitas e o tempo das
sementeiras, o que morre no Inverno para renascer na Primavera.
E mais estimulante ainda é
este frente a frente quando sabemos que a cultura clássica de Ricardo Reis é
também a cultura clássica de Amadeu Ferreira.
A Ars Moriendi na sequência,
ou melhor, no términus da ars vivendi, é sobretudo, a arte da dignidade e como é
digna a morte daqueles, simples e anónimos, mas tão nobres, que escrevem os
versos de Niebro, pois são eles que escrevem os versos de Niebro em quem substabelecem,
mais que testamento de vida, são reflexões e conselhos sobre a morte.
Não há vidas felizes na
poesia de Niebro, mesmo quando não cessa a procura da felicidade, porque não
facilita a realidade e não esquece o sofrimento dos outros, familiares ou
vizinhos que ele já não vê a não ser na sua obsessiva memoria, nos poiais já[i]
despidos de humanidade nas ruas desertas da sua aldeia, mesmo vila continua a
ser a sua aldeia, tão desertas que até se pode ouvir o silêncio.
Por fim, os impropriamente
ditos hai-kai, pequenos tercetos de ostinato rigore, com a complexidade
liofilizada na simplicidade. Alimenta-se de viagens que não sobrecarregam o
estômago, mas satisfazem o espírito. Por vezes o campo instala-se na cidade. E
uma bicha de automóveis pode transformar-se num rebanho de ovelhas. E o céu, regressados
ao nosso país de lameiros e olmos de folha perene, pode tornar-se vermelho por
força da cor das cerejas.
Uma nota final: participei na
tradução destes poemas, mas é de toda a justiça realçá-lo que o mérito maior e
o maior trabalho se deve a António Cangueiro.
E termino com os últimos três
versos do Ars Vivendi, Ars Moriendi :”ai! Quem pudesse adiar/o seu nascimento,
que esta merda/do mundo até é bonito.
Vale. Carpe diem
Rogério Rodrigues
Foi uma tarde maravilhosa. Agradeço a todos os que contribuíram para este momento enorme com a sua presença. Especial gratidão para Amadeu Ferreira e Rogério Rodrigues, cujo texto tomei a liberdade de levar para o blogue da Poética ( http://poetica-livros.com/Blog/?p=344 )
ResponderEliminarE obrigada, Leonel, pelo carinho com que sempre divulga as "coisas" da Poética.
Um abraço,
Virgínia
(Poética)