Tinha acabado de
entrar o Ano Novo, talvez 1958, 1959?. Sinceramente não sei precisar. Era eu um garoto, tinha sete, oito anos.
Na altura quando
a banda de música de Moncorvo regressava de uma actuação, brindava os da terra na
Praça Francisco Meireles com algum do seu reportório. As notas tinham certamente
soado bem em terra alheia. E que outra música havia em Moncorvo, para além daquela
que sazonalmente saía dos altifalantes (grandes cornetas) dos circos Flecha
Monteiro e Mérito que acampavam na Corredora, onde vivi pouco tempo, tinha eu 5 anos, junto á capela de S. Sebastião. Era vizinho do
Sr. César Carmachinho, caçador afamado de bigode e
nariz esguio. Quando regressava a casa ainda a tarde era jovem, o peso das perdizes
e coelhos obrigavam-no a um andar
descompassado.
Nas traseiras da
capela morava o Sr. Tódu. Este devia
ser rico pois já tinha carro , e
não havia muitos em Moncorvo. Penso que
era um Ford de jantes com raios e de má
memória para mim. E porquê? Na altura depois do almoço o Sr. Tódu costumava dar
duas de conversa no café do Sr. Moreira na Praça Francisco Meireles. Eu já a
tinha fisgada apesar da tenra idade. E uma tarde mal o vi entrar no carro e dar à chave (nesse dia sem recurso á manivela), sentei-me na traseira, uma espécie de grade junto á roda suplente. Ele arrancou e passados
poucos metros, Corredoura acima, quando vi que a máquina já levantava muito pó,
e, antes que fosse tarde, atirei-me para o chão. Não fiquei lá muito bem
tratado. Ele não se apercebeu, seguiu viagem.
Mas voltando á
banda. O gosto pela música era de tal ordem que a garotada na altura “inventou”
uma banda. Era um grupo de rapazolas que
residia nos locais que davam acesso á Estação de Caminhos de Ferro”-Ruas de
Santo António, da Cal e Rua do Cabo onde vivi dois ou três anos. Aqui tinha
como vizinho, o brincalhão tio João Poiares que era sapateiro e que me trouxe
iludido meses a fio, com um sorriso de criança, por causa de uns pirilampos que
dizia ter em casa e que mil e uma vezes me prometeu. De promessa não passou.
O tio Barbinhas
afamado matador de porcos, e vendedor de melões de carrasco que subiam da
Vilariça, a Sra. Amélia Falmégas ansiosa em aprofundar os conhecimentos da vida
alheia. Ah! Já me esquecia! A Dona Noémia estava sempre bem ajanotada.
Desculpem, já me
voltava a esquecer da banda! Os canaviais cresciam na estação, ao lado dos belíssimos
jardins, resguardados por sebes geométricas, que ouviam num ritual diário o
cantar dos carris, transmitido pelo peso do velho comboio a vapor ou da
automotora, a que alguns em tom depreciativo alcunharam de carreta, talvez
devido ao formato obsoleto e desajeitado. Com as canas que o velho Estácio
(tcherrim) nos dava, porque entrar na estação era obra, fazíamos os
instrumentos. Como nós nos apurávamos! E assim ao desafio, nos tornámos
pequenos fazedores de gaitas. O melhor artesão, meticulosamente e com singeleza
idealizava e construía o mais belo instrumento. Desde Clarinetes, Trompetes,
(com bocal e pistões ) até ás Flautas, as preferidas dos menos
habilidosos e pacientes. Não dava para diversificar, porque as canas mesmo que ainda
tenras de verdes, não se afeiçoavam ás curvas do saxofone, da tuba ou do
contra-baixo. Na extremidade de cada
instrumento, com arte, engenho e candura, colocávamos uma mola feita de uma
cana de pequena grossura, que segurava uma folha de linhas estreitas, arrancada
do caderno escolar, onde a magia inventava uma partitura despida de notas.
O mestre era o
Sá Dias o filho do chefe da estação. De batuta na mão, comandava e também corrigia
qualquer andar descoordenado, capaz de fazer inveja aos legionários que tinham
assentado arraiais numa casa a caminho da Igreja, em frente á Pensão do Sr.
Anastácio. Pensando bem á distância , havia dois motivos para ser ele a comandar a banda. Por um lado era provavelmente
o mais velho do grupo, e por outro por inerência das funções que o pai
desempenhava. O que também quer dizer que era o dono da matéria prima com que
se faziam as gaitas. Motivos suficientes para atingir o estatuto de “ maestro”.
E lá andávamos nós radiantes, desabrochados, nas tardes de verão, na rua
paralela á linha do comboio, entre o edifício principal da estação e a casa do
Sr. Paiva, á curva da passagem de nível, refrescados pela brisa que descia da
serra do Reboredo, para onde também, se o vento estivesse de feição, se espreguiçava
e volitava o fumo que saía da chaminé do comboio a carvão, que chorava de dor, do cansaço provocado pela subida desde o Pocinho até Moncorvo.
A tonalidade do
bramido do silvo da velha máquina a vapor suspirava de alívio, ao avistar a
passagem de nível das Aveleiras, (também de má memória para mim) porque estava
vencido o caminho mais duro até Duas Igrejas. Já agora deixem-me contar esta história,
da passagem de nível das Aveleiras, em dia de magusto na Nossa Senhora da
Esperança organizado pelo Padre Ribeiro lá para os lados da Açoreira, local que
recentemente visitei passado mais de meio século.
No regresso a
Moncorvo no final de uma tarde de sábado ou domingo de Outubro, apanhei boleia
de bicicleta que já estava mais que lotada. O meu irmão (Manuel Araújo), mais
velho que eu, ía sentado no quadro, o dono da bicicleta, o Janeiro de
Meirinhos, era o condutor, ocupava o selim, ( ex-alunos do Colégio Campos
Monteiro) e a mim sentaram-me no
guiador. Na descida para as Aveleiras
onde havia uma pequena caseta, a passagem de nível estava fechada. Eu fiquei
apavorado prevendo o pior. O Janeiro travou, mas com o peso dos 3 passageiros o
embate foi de tal ordem que rebentámos a primeira corrente. Como ía sentado no
guiador e mais próximo do perigo, fui projectado para o meio da linha. O
guarda, no caso a senhora Deolinda, atirou com a bandeirola que segurava na mão,
e, que sinalizava a passagem ao maquinista, e teve ainda tempo de me retirar do
meio dos carris. Aqui podem crer que fiquei mais mal tratado, do que na tarde
em que me pendurei no carro do Sr. Tódu. Fui parar ao hospital, de onde saí com
o rosto envolvido em ligaduras, qual homem Invisível. O Janeiro prometeu-me uma
caneta de tinta permanente, coisa fina para quem devia andar na segunda classe,
se não revelasse ao meu pai (que não era de brincadeiras e ainda para mais agente da P.S.P.) que o meu irmão
era também companheiro de viagem. E assim fiz. Como me foi pedido, fiquei
calado que nem um rato. Mas nunca consegui testar a qualidade da caneta, se era
de aparo grosso ou fino.
Mas regressemos
á banda da qual era maestro o Sá Dias. Dos lábios moldados ao bocal da minha
trompete, saía uma pressão que dava o tom a algumas modas, desde as das
procissões, até às mais populares. Por exemplo: La Campanera, música espanhola na
ribalta, e que fazia parte do reportório das bandas filarmónicas, das mais
modestas, às mais afamadas. Mas o meu sonho era entrar para a banda de música de
Moncorvo. E já me via em noite de arraial de trompete nos lábios, qual Luís
Armstrong. Mas ainda nem para a flauta tinha ”peito e ar”. De menino se torce o
pepino, diz o povo. De garoto por duas vezes consegui (levado pelo meu irmão, o
tal da bicicleta, que já solfejava as primeiras notas na flauta) assistir ao ensaio
nocturno da banda numa casa junto á Igreja da Misericórdia, nas traseiras do actual Edifício da Câmara
Municipal de Torre de Moncorvo. Agora
vai. Prometo!
No início do Ano
Novo, (1958,1959?) a banda de música de Moncorvo percorreu as ruas da vila
durante algumas noites a cantar e a tocar os reis. E quando se cantam os reis
espera-se pelas Janeiras. Talvez as dádivas se destinassem á compra de novos instrumentos
musicais, ou então para a feitura de fardas porque alfaiates não faltavam em
Moncorvo. Não sei, era um “catraio”, assim dizia o meu pai quando perguntava
por mim a alguém. Mas importante era ouvir a banda. Lembra-me de numa dessas
noites frias, assistir ao cantar dos Reis, junto á casa do Sr. Carocha( alcunha ?) á saída da Praça Francisco
Meireles, num pequeno largo no início da Rua dos Sapateiros. Nunca mais os
esqueci.
Como aos dez
anos deixei Moncorvo, esvaneceu-se o desejo de aprender música e tocar a
trompete para desgosto meu. Aqui ficam então, os reis da Banda de música de Moncorvo.
Boas Festas,
Boas Festas,
Desejamos neste
dia,
Que gozem o Ano
Novo,
Com saúde e
alegria.
Nestas noites
tão geladas,
Prá andarmos
tanto caminho,
Pedimos o
agasalho,
Do vosso fumeiro
e vinho.
Dai-nos dinheiro
ó boa gente,
Que a malta fica
toda contente,
Somos rapazes
temos esperança,
É mocidade de
confiança.
Há chouriças
penduradas, há morcelas e alheiras,
Desçam depressa
as escadas venham-nos dar as Janeiras,
Se todavia não
tem qualquer peça de fumeiro,
Nós aceitamos
também, dinheiro muito dinheiro.
A banda precisa
de viver,
Sempre para dar,
Horas de prazer.
Comanda a
alegria do povo,
E vem desejar
Feliz Ano Novo.
Estácio de
Araújo
Lindooooooooo!
ResponderEliminarE faz tantos anos que não sabia do EstácioQQQQQQQQQQ
Abraço
Caro anónimo,
EliminarPois fará, mas não sei quem está lá!
Abraço.