terça-feira, 25 de abril de 2017

MONCORVO - Retrato a sépia

Todas as minhas memórias de infância começam em Moncorvo.
Há uma ligação irreprimível com a serra do Roboredo , que eu via das janelas de minha casa e povoava de fantásticas aventuras , no meio dos seus caminhos pedregosos e do arvoredo de cheiro penetrante. Dela eu conseguia olhar a vila como um casario distante à volta da igreja e esse efeito era como que um horizonte de liberdade. Contavam-me histórias do meu avô Adelino a atravessar a serra muitas vezes de noite para ir de Urros a Moncorvo, a cavalo, desafiando lobos e outros perigos. Histórias também da riqueza imensa que a serra guardava , com o seu ventre cheio de minério de ferro.
Da vila para a serra eu passava pela estação de caminho de ferro, com o seu depósito de água e a linha férrea cintilante ao sol, deitada sobre as travessas de madeira, com um cheiro de alcatrão que nunca esqueci. A estação e perto dela a fonte de Sto. António , com o tanque de água fresquíssima mesmo no Verão e o musgo das paredes, eram a fronteira entre o meu mundo conhecido e a aventura .
Na vila , a igreja dominava a paisagem. O adro e, dentro dela, a majestática nave , com uma luz coada e os seus recônditos onde as vozes se perdiam em ecos abafados . Igreja de dominante presença, com o granito acastanhado das suas paredes , os seus sinos que marcavam o tempo da terra , um tempo que no Verão abrasador se alongava pelas ruas e no Inverno se acolhia nas lareiras .
Pelas festas a igreja recebia o pregador , de voz troante e que vinha de fora para falar aos fiéis. A sua voz reberverava nas arcadas ogivais como a de um bíblico mensageiro .
E a praça - a praça ,defronte ao castelo, era uma imensa sala de visitas, com coreto e bancos em torno. Mas dela eu fugia para outras aventuras, na Corredoura e no campo da bola , que eram o meu poiso de eleição.
Festas, feiras, foguetório, bandas de música, procissões, tudo passava ali pela praça, debaixo dos meus olhos maravilhados.
Depois havia ainda o cine-teatro, as Aveleiras, a rua do Cabo, a casa da guarda, as quintas . E a casa dos meus Pais - o trabalho da oficina de alfaiataria, o sobe e desce da minha Mãe, a minha Avó Amélia , o escano do quintal onde nas noites de Verão se podia dormir, o fumeiro, os cântaros de água fresca.
E as pessoas e casas da vila, o sóto, o café do Sr. Basílio , a farmácia da D. Carmen.
Imagens que no passado reencontro quando preciso de me reencontrar no presente.

7 comentários:

  1. O texto do Daniel de Sousa é aquele retrato que contém toda a luz e sombra, o calor e o frio, a magestade da igreja, o Roboredo prenhe de ferro, o bulício da vila, o aconchego do lar.
    Mas o Daniel é, sobretudo, um grande poeta.
    E também um grande cirurgião de oncologia pediátrica.
    Moncorvo pode orgulhar-se deste seu filho.

    Abraço
    Júlia

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  2. Como eu senti no coração todas as palavras do Daniel. Moncorvo e tudo isso, moncorvo e magia. As minhas brincadeiras na rua nova, as minhas brincadeiras no castelo..tudo tão inocente e belo.! Abençoados todos os que amam terra tão bela e nobre .

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  3. É também a vila da minha infância,que o Daniel retrata tão bem.O
    meu "poiso de eleição" era o Castelo,onde jogava à "macaca"e,mais tarde,já adolescente,dançava nas noites das festas de Agosto.
    A poesia e a prosa do Daniel são de altíssima qualidade.Nelas se revela toda a humanidade do grande profissional que ele é.Ora leiam o que ele escreve no seu blogue "Head and Neck"!

    Uma moncorvense

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  4. O sóto,o café do Sr. Basílio,a Farmácia da D.Carmem,o Colégio Campos
    Monteiro,tudo tão longe e tão perto.
    Muito obrigada por tão belas recordações.

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  5. Gostei de vereste texto.Mas gostei, sobretudo, por convocar memórias de tempos que eu guardo com muito carinho. Tempos do Dr. Adelino em Urros.
    Tempos em que escolher sigificava paixão, parceria com o mais fraco, com os mais vulneráveis. Médico! naquele tempo, ir a Urros em troca de quê?O médico sabia tudo e com igual dedicação se debruçava sobre este ou aquele problema.Dias de calor tórrido, e lá chegava o Dr. Adelino; uma bacia com água, uma toalha de linho, e não havia mais barreiras entre m´dico e doente.Depois lá se recolhia o trigo, todos colaboravam, conforme podiam. "E está muito mal, mas o Dr. Adelino vai operar, aqui, em nossa casa. E tudo corria bem. " Ser médico, era assim, antigamente.Nos meus tempos de menina.
    E quem me trouxe ao mundo, em casa de meus Pais, foi o Dr.Ferreira, pai do Arquitecto Matos Ferreira
    E a minha avó foi operada, numa situação de alguma gravidade, pelo Dr.Adelino;em casa, sem sair do aconchego da família.Em Urros o Dr. Adelino é recordado, sempre, com muito respeito e carinho.
    Tininha

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  6. Revejo-me em tudo que está descrito neste belíssimo texto. É como se estivesse a assistir ao desbobinar de um filme sobre todo o Moncorvo físico e social da minha infância. Que maravilhoso retorno ao passado já tão distante e ao mesmo tempo tão perto!

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  7. Meu deus !.. Cada vez que releio este texto sinto a paz da minha juventude ossada em Moncorvo.. Dr. Daniel , um coração que retrata tao bem o encanto daquela terra tem que ser um ser humano muito nobre.. Que as forcas da natureza se unam e o deixem por muitos anos escrever e exercer a sua nobre profissão. Muito obrigada.

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