A amêndoa
coberta foi, de
certo, uma das primeiras indústrias artesanais da vila. Destinava-se ao
consumo, não só local e regional, mas também nacional e, nos começos do séc.XX,
tornou-se um produto de exportação, principalmente para o Brasil, a fim de
matar saudades da terra aos muitos milhares de transmontanos que para essas
paragens emigravam. Mais tarde, a amêndoa coberta de Moncorvo acompanhou outras
rotas de emigração: a França, a Alemanha, a Suiça, o Luxemburgo...
Mas
falar de amêndoa coberta é também
falar da cobrideira de amêndoa ,
da matéria prima utilizada na sua
indústria caseira e do cenário da acção, o que implica falar ainda da “maquinaria” necessária
ao seu labor.
1. Os ingredientes
são : amêndoa , açúcar e água.
2. São seus
instrumentos de trabalho:
2.1. a bacia de cobre (tão limpa que até
espelha), com ceca de 70 a 80 centrímetros
de diâmetro;
2.2. o “caco”, grande recipiente em barro grosso,
com as medidas da bacia e que se enche de cinza até mais ou menos ¾ . Esta
cinza é coberta por duas ou três pazadas de brasas, três ou quatro vezes ao dia.
Depende das estações do ano.
2.3. uma trempe
em ferro, grande e bem forte;
2.4. uma
boa caldeira
de cobre onde vai ferver a
água e o açúcar para cada “baciada” :
10, 12 ou 15 quilos de açúcar, até
atingir o ponto exacto;
2.5. uma
colher de sopa, uma concha e um caneco;
2.6. oito dedais;
2.7. um
banco pequeno.
Observemos
então a cobrideira no seu cenário de acção e
nas diferentes fases do seu labor.
Os
preparativos:
3. Pelar e torrar o
grão de amêndoa.
3.1. A cobrideira
deita o grão de amêndoa em água fervente (mas tendo o cuidado de o não deixar
cozer) , para o “pelar”;
3.2. coloca o grão
pelado em tabuleiros de folha de Flandres, (“as latas” ), que leva ao forno a torrar.
(Hoje os tabuleiros são de alumínio ou de materiais inoxidáveis e
anti-aderentes. Um luxo !). O grão de
amêndoa torrado deve ganhar uma tonalidade alourada muito ligeira e ser
agradável ao paladar.
4. A calda de açúcar :
4.1.
Uma cobrideira experiente sabe a “olhómetro”
que quantidade de água é necessária para a quantidade de açúcar que vai
utilizar;
4.2.
a caldeira sobre a trempe e esta sobre lume esperto vai fervendo e só a
cobrideira é que sabe “ver o ponto”
: com uma colher de pau que mergulha na calda do açúcar e a levanta para ver
como “pinga”, sabe se o ponto ainda está em pérola de queda rápida –
demasiado líquida – ou se já está em
ponto de pérola de queda tão lenta, que já faz fio – demasiado espessa -. Tem
de ser o ponto de pérola que a
cobrideira considere não apenas bom, mas óptimo. É este momento crucial, pois
determinará a brancura da amêndoa e os seus bicos que lhe davam aquele aspecto
de flor a desabrochar e que só as cobrideiras de Moncorvo eram capazes de
fazer.
5.
A “cobrição” propriamente dita:
5.1. A cobrideira
coloca um cepo entre o caco e a bacia, para lhe dar uma inclinação de cerca de
25/30 graus, põe o seu avental de uma brancura imaculada, de peitilho e muito
rodado, deita uma boa porção de grão torrado mo meio da bacia, senta-se no seu
banqinho, coloca os oito dedais nos dedos – excepto nos polegares - pois a bacia chega a aquecer bastante (para
ajudar a secagem do açúcar sobre o grão de amêndoa torrado ) e as cabeças dos
dedos ganhariam queimaduras tremendas.
5.2. Benze-se e benze a bacia, pedindo aos seus
santos ou deuses em que acredita que a amêndo saia boa, branca como a neve e
linda como a flor da amendoeira, porque os olhos comem primeiro.
5.3. Pega no caneco com
a calda de açúcar que está à sua direita, com uma colher rega a amêndoa
torrada, pousa o caneco e começa a movimentar os grãos de amêndoa que não podem
colar-se, muito menos empastar-se , e ganha então o ritmo do seu “incompleto
remar”, pois o movimento para
a frente é o do remador, enquanto que o movimento para trás fica incompleto. Estes
movimentos de braços, espáduas e costas é executado milhares de vezes ao dia.
5.4. Engana-se quem
pensa que este é um trabalho fácil, pois se faz “sentadinha”. Não é fácil, não: o caco quente está entre as
coxas da cobrideira e a barriga permanentemente encostada àquele calor. No
verão é insuportável. Por vezes, desinsofridas, as cobrideiras têm de ir pôr
água fresca na barriga e nas coxas que apresentam verdadeiros escaldões. Estas
condições de trabalho acarretam as suas consequências:
os intestinos sofrem muito, observa-se
o aparecimento de hérnias discais, os
ossos das pernas e braços desenvolvem artroses
tremendas.
6. Tipos de amêndoa coberta :
6.1. Há hoje muitos
mais tipos de amêndoa coberta do que ao longo do século passado. Essa diferença
reside principalmente nas horas/dias de açúcar que a amêndoa torrada leva.
Assim teremos a “peladinha” de um
dia, de dois dias, etc. Antigamente
a peladinha era apenas feita por encomenda.
6.2. Há também a amêndoa de canela e de chocolate. Esta
era já feita pela minha mãe nos anos
’50, ’60 do século passado. Retirava da amêndoa, já com bicos, 3 ou 4 quilos e aplicava-lhe uma camada de
calda de açúcar em que havia desfeito meio quilo de chocolate. Era bonito na
mesa das doceiras e fazia as delícias da miudagem.
7. Ao longo de todo o
século passado, a amêndoa coberta era produzida e vendida pelas doceiras em feiras e romarias, juntamente con as
súplicas, os económicos, as cavacas e, o que dava mais lucro, o famoso licor de
canela. É que para beber, só água da fonte, o vinho da Tia Maria Trovões e os
famosos pirolitos. Por isso, o licor de Canela da Tia Antoninha Biló tinha
tanta saída.
8. Hoje há já
doceiras e cobrideiras de amêndoa de Moncorvo que estão presentes em feiras nacionais e até internacionais,
dando a conhecer os seus excelentes produtos e alargando a seu círculo de
fregueses e apreciadores.
Aspectos médicos e
burocráticos da vida profissional
das doceiras e cobrideiras de amêndoa de Moncorvo:
1. Era
obrigatória a prova da tuberculina e BCG.
As microradiografias eram feitas através de rastreio anual e cada micro custava
20 escudos:
2. Também
as vacinas tinham de estar em dia.
3. Era
obrigatório trazer consigo o Boletim de
Sanidade que, até 1976 pagava um imposto do selo no valor de 16 escudos e,
apartir de 1977 até 1979 passou a ser de 47 escudos (um aumento de 200%) e as
doceiras protestaram. Não sei o que se passou depois, porque a minha mãe foi
operada à coluna e à coxartrose e reformou-se.
4. À
Câmara era pago, em feiras e festas, o “terrado”.
5. Era ainda paga um
“contribuição industrial” (
“ilustrial” lhe chamavam as doceiras ) e foi com base nesta contribuição que a
minha mãe recebeu em 1980 uma pequena reforma do ramo de “pastelaria e hotelaria”.
Havia trabalhado 50 anos como doceira e cumprira todas as normas então
vigentes.
6. Ainda
havia a questão dos pesos. Todos os anos era necessário ir aos baixos do
Tribunal fazer a aferição. Era
retirado o chumbo marcado com a data do ano anterior e colocado outro com a
data do ano corrente. Se alguém se tivesse esquecido, pagava uma multa maior
que o custo da aferição.
7. Até 1945/50 as doceiras acondicionavam a amêndoa coberta em taleigas de linho
grosso e estopa irrepreensivelmente brancas. Era então vendida a granel. O freguês pedia um quilo e, com um
pequeno corredor como os do açúcar ou do café nos sotos, tiravam-se as amêndoas
com muito jeitinho para não quebrar os bicos, e colocavam-se num cartucho de um
papel parecido com papel costaneira. Pelos anos 50/55 tornou-se obrigatório o
uso dos sacos de celofane de variadas cores e atados com uma fitinha, já muito
semelhantes às embalagens de hoje.
8. Formação das cobrideiras de amêndoa
Era
feita por observação directa e também por “trial and error”. Com o tempo, uma moça expedita podia chegar a
ser uma boa cobrideira.
Mas
recordo que entre os anos de 1944 e 50 eu ficava em casa da minha professora primária,
ora um mês ora dois meses, porque a minha mãe ia cobrir amêndoa para Vila-Flor
e Mirandela, para que algumas raparigas aprendessem com ela. Era-lhe paga a
jeira da trabalhadora do campo e tinha cama e mesa.
Como nota final e um tanto pitoresca,
talvez pelo facto de a cobrideira passar os dias sentada, a maior parte das
vezes sozinha no isolamento da sua casa, ela cantava. Cantava muito. Principalmente
os fados de faca e alguidar que os ceguinhos cantavam pelas feiras.
Lembro-me que a minha mãe cantava muito bem
fados do velho Marceneiro. Eu, que não canto nada, e estava ao lado a ler ou a
estudar, suspendia tudo para a ouvir. Até o tempo parava.
Leiria, 12 se Novº de 2012
Júlia Guarda Ribeiro
Nota do editor: com este texto/documento comemoramos as 600.000 visitas ao nosso blogue.Obrigado a todos.Para a Júlia, um xi coração.
Maria Luiza Rodrigues escreveu: Hum...deliciosas...
ResponderEliminarPois é como no Rio de Janeiro não tem amêndoa coberta, estarei em Portugal entre maio/junho para saborear este petisco.
ResponderEliminarA.Vilela
Maria Marques escreveu: Eu sou uma verdadeira testemunha verás, pois a minha Sobrinha teve uma loja de Bolos só recheados de amêndoa.. e também cobria a amêndoa..essa minha Sobrinha se chama!!! Maria Julia. Flormendoa... já agora ela continúa a vender nas feiras.. ajudem-na, ela merece e mt. Obrigado...
ResponderEliminarA minha mãe e as minhas tias coneceram munto bem a Tia Antoninha Biló. Disiam que era a melhor cobridora de amendoa daqele tempo. Ja lá vão praí quazi uns 50 anos.
ResponderEliminarMaria Armandina
Um belo texto que explica muito bem o trabalho da cobrideira de amêndoa.
ResponderEliminarContinuam pelas mãos da Dona Dina a manter a tradição e mostrar ao mundo o único produto genuinamente moncorvense.Texto antológico que deve ser guardado no centro de memória.Bem-haja doutora Júlia Ribeiro.
ResponderEliminarJ.
Para quando um monumento ás cobrideiras da nossa amêndoa coberta?O senhor presidente da câmara terminava o mandato em beleza e a praça das regateiras está mesmo a pedir.
ResponderEliminarNão digam que a troyca não deixa.
Amendruco
tEXTO a guardar, Eu já o guardei porque me parece que tem tudo sobre a arte de cobrir amêndoa. E dou os meus parabéns a uma filha que tem tanto orgulho da mãe.
ResponderEliminarUm Leitor dos Farrapos
Esqueci-me de dizer que também concordo com uma escultura da cobrideira e na Praça das Regateiras, pois claro.
ResponderEliminarUm Leitor dos Farrapos
Pois aqui está um documento Histórico que tem que ir direitinho para a Biblioteca da nossa terra.Parabéns à nossa querida Julinha,que nos dá a conhecer "coisas" que eu por pura ignorância desconhecia.
ResponderEliminarBeijinhos e muito obrigada.
I.G.
Olá, Amigos e Blogueiros:
ResponderEliminarO meu agradecimento pelas vossas palavras tão amáveis.
Abraços
Júlia Ribeiro