literatura não tem que seguir os ditames daquilo que a
sociedade convencionou chamar bom gosto”. Quem o diz é César Gaspar, poeta de
um único livro, saído dos prelos manhosos de uma dessas editoras de que todos
já ouvimos falar, e protagonista de um dos oito contos de que se compõe esta
recolha de A. M. Pires Cabral, recentemente publicada pela Cotovia.
“Singularidades” é o seu título e veste bem quer à editora,
agora a redefinir o seu perfil sóbrio mas aventuroso, quer ao autor, que com
notável discrição tem vindo a construir uma obra de pessoalíssima voz que varia
de género como quem muda de camisa: poesia, romance, conto, teatro, crónica, literatura
de viagens e o mais que o talento versátil permite.
Uma boa ilustração daquele enunciado de César Gaspar é a
antologia de textos literários que decide organizar, inteiramente consagrada à
temática da flatulência (leu bem). Reabilitar o traque – t***, por pudor ou
louvável educação do narrador –, eis o que move este antologisto-dependente,
homem de muito empenho e poucas realizações, por culpa dos altos patrocínios
que nunca chegam e de editoras de orelhas moucas. Para levar por diante o seu
propósito conta com escritores cujo nome fala alto, de Fialho de Almeida a
Vitorino Nemésio, passando por Virgílio Ferreira, extensamente representado –
ler para crer. Guerra Junqueiro, no que à magna questão do traque diz respeito,
já é mais discutível.
Oito contos, oito golpes de finíssima ironia a abrir brechas
num quotidiano palpável, de aparência regular, e sorrisos em quem não veio ao
mundo desprovido de sentido de humor. Cada um deles traz no título o nome do
protagonista, acrescido de uma espécie de epiteto que age como síntese (e
redução) do formato humano. As personagens, aparentemente fora do figurino
comum, começam assim por enfileirar num curioso índice onomástico que se
estivesse nas tintas para o alfabeto, para a ordem natural das coisas. Mas vamos
a nomes e a sucessos narrativos que sempre avançam em direcção a um desfecho
inesperado, numa prosa desperta, desenfadada, de uma precisão que se diria
infalível, de uma cópia de palavras mais que pródiga, a praticar o contraste e
a surpresa. Por ordem alfabética:
Artur Pacheco tem (além de uma costela da célebre personagem
de Eça) uma mão cheia de causas estrambólicas e faz delas uma cruzada que
aproveita apenas aos desígnios escarninhos do autor. Basileu Simões tem uma
vontade, a última: quer ser sepultado com a farda de bombeiro, com os braços
estendidos. César Gaspar tem um vício: a organização de antologias temáticas,
“modalidade, digamos, sucedânea da criação literária propriamente dita”. Flávio
Cerqueira tem uma obsessão: a prova dos nove, que aplica nas análises do
laboratório clínico onde trabalha com resultados francamente animadores para o
leitor, que dos reveses dos outros retira um perverso prazer. Gabriel Guerra
tem um novo ofício, muito afastado dos traçados da juventude, dominada por essa
“matéria altamente biodegradável” que são os sonhos; é astrólogo. Hipólito
Clemente trabalha numa dessas mega-editoras que tornaram “o mundo editorial
mais monótono, mais estreito, mais obediente ao American way” e tem na mesa uma
proposta de publicação de arrepiar o cabelo: a fusão da língua de Camões com a
língua de Shakespeare. Honório Rocha tem um transtorno dissociativo de
identidade, e é quanto basta para uma hábil pirueta conclusiva que poucos
poderiam assinar. Rodolfo Isidro Palha tem um problema tormentoso que, como uma
sina, não se lhe despega: as iniciais do seu nome, RIP.
E o leitor, trazido ao convívio de um narrador muito sabido
do seu ofício, que vai pondo, ligeiro mas desmantelador, o dedo na ferida, tem
a sensação de que se move num mundo de insânia, todo construído a partir de
matrizes discursivas de anedotas que tivessem sido postas em prática e trazidas
ao espaço público em letra impressa. Tal como numa anedota, há falsos começos,
há manobras de diversão, respirações bem medidas, há coincidências tramadas, há
espaços permitidos à explicação que nunca pesa, desvios no percurso de seta
endireitado ao coração da história, como recomenda o género.
Mas nem tudo são singularidades, nem tudo é facécia. E disto
nos falaria suficientemente o conto “Gabriel Guerra ou desintegração”, narrado
num tom dorido que expõe a mágoa de uma geração de ideais traídos. A sensação,
por vezes, é a de que somos apresentados a figuras que são cópias do mundo dito
real, como se A. M. Pires Cabral anunciasse um cardápio de singularidades e,
por desfeita (e espírito crítico), nos servisse imitações em bandeja irónica:
autores obscuros de ego sequioso à espera da “recensãozinha” que nunca chega,
autoproclamados escritores e conferencistas, yes-mans, académicos que carregam no
corpo “o demónio da especialização”, como diria o narrador de “O Porco de
Erimanto e outras fábulas” (2010), distinguidas com o Prémio Camilo Castelo
Branco.
Enfim, como se participássemos de uma visita de
reconhecimento a territórios já cartografados, mas nem por isso de menor ou
pouco original valor narrativo. Um desses territórios, há muito rendido àquele
produto romanesco que “cheira ao desinfectante das piscinas”, é o da edição,
satirizado, de viseira bem aberta, através do Dr. Ivo Farrajota, “adepto
incondicional do sistema vigente, no que toca ao ciclo vital do livro: gráfica
– centro comercial – guilhotina […] Ele próprio lê pouco e o que lê não vai
muito além de Dan Brown e do seu principal epígono português, Rodrigues dos
Santos (dos livros de Margarida Rebelo Pinto e quejandos por acaso não gosta)”.
“A grande literatura já lá vai”, solta com convicção o Dr.
Farrajota, a quem recomendamos, em jeito de desmentido, A. M. Pires Cabral e
estas suas “Singularidades” e, já agora, uma visita à Cotovia para desenfastiar
da literatura descartável que ajuda a produzir.
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