domingo, 23 de abril de 2017

A.M. Pires Cabral. Ainda se pode brincar com coisas sérias ou já não?

literatura não tem que seguir os ditames daquilo que a sociedade convencionou chamar bom gosto”. Quem o diz é César Gaspar, poeta de um único livro, saído dos prelos manhosos de uma dessas editoras de que todos já ouvimos falar, e protagonista de um dos oito contos de que se compõe esta recolha de A. M. Pires Cabral, recentemente publicada pela Cotovia.
“Singularidades” é o seu título e veste bem quer à editora, agora a redefinir o seu perfil sóbrio mas aventuroso, quer ao autor, que com notável discrição tem vindo a construir uma obra de pessoalíssima voz que varia de género como quem muda de camisa: poesia, romance, conto, teatro, crónica, literatura de viagens e o mais que o talento versátil permite.


Uma boa ilustração daquele enunciado de César Gaspar é a antologia de textos literários que decide organizar, inteiramente consagrada à temática da flatulência (leu bem). Reabilitar o traque – t***, por pudor ou louvável educação do narrador –, eis o que move este antologisto-dependente, homem de muito empenho e poucas realizações, por culpa dos altos patrocínios que nunca chegam e de editoras de orelhas moucas. Para levar por diante o seu propósito conta com escritores cujo nome fala alto, de Fialho de Almeida a Vitorino Nemésio, passando por Virgílio Ferreira, extensamente representado – ler para crer. Guerra Junqueiro, no que à magna questão do traque diz respeito, já é mais discutível.
Oito contos, oito golpes de finíssima ironia a abrir brechas num quotidiano palpável, de aparência regular, e sorrisos em quem não veio ao mundo desprovido de sentido de humor. Cada um deles traz no título o nome do protagonista, acrescido de uma espécie de epiteto que age como síntese (e redução) do formato humano. As personagens, aparentemente fora do figurino comum, começam assim por enfileirar num curioso índice onomástico que se estivesse nas tintas para o alfabeto, para a ordem natural das coisas. Mas vamos a nomes e a sucessos narrativos que sempre avançam em direcção a um desfecho inesperado, numa prosa desperta, desenfadada, de uma precisão que se diria infalível, de uma cópia de palavras mais que pródiga, a praticar o contraste e a surpresa. Por ordem alfabética:   
Artur Pacheco tem (além de uma costela da célebre personagem de Eça) uma mão cheia de causas estrambólicas e faz delas uma cruzada que aproveita apenas aos desígnios escarninhos do autor. Basileu Simões tem uma vontade, a última: quer ser sepultado com a farda de bombeiro, com os braços estendidos. César Gaspar tem um vício: a organização de antologias temáticas, “modalidade, digamos, sucedânea da criação literária propriamente dita”. Flávio Cerqueira tem uma obsessão: a prova dos nove, que aplica nas análises do laboratório clínico onde trabalha com resultados francamente animadores para o leitor, que dos reveses dos outros retira um perverso prazer. Gabriel Guerra tem um novo ofício, muito afastado dos traçados da juventude, dominada por essa “matéria altamente biodegradável” que são os sonhos; é astrólogo. Hipólito Clemente trabalha numa dessas mega-editoras que tornaram “o mundo editorial mais monótono, mais estreito, mais obediente ao American way” e tem na mesa uma proposta de publicação de arrepiar o cabelo: a fusão da língua de Camões com a língua de Shakespeare. Honório Rocha tem um transtorno dissociativo de identidade, e é quanto basta para uma hábil pirueta conclusiva que poucos poderiam assinar. Rodolfo Isidro Palha tem um problema tormentoso que, como uma sina, não se lhe despega: as iniciais do seu nome, RIP.
E o leitor, trazido ao convívio de um narrador muito sabido do seu ofício, que vai pondo, ligeiro mas desmantelador, o dedo na ferida, tem a sensação de que se move num mundo de insânia, todo construído a partir de matrizes discursivas de anedotas que tivessem sido postas em prática e trazidas ao espaço público em letra impressa. Tal como numa anedota, há falsos começos, há manobras de diversão, respirações bem medidas, há coincidências tramadas, há espaços permitidos à explicação que nunca pesa, desvios no percurso de seta endireitado ao coração da história, como recomenda o género.
Mas nem tudo são singularidades, nem tudo é facécia. E disto nos falaria suficientemente o conto “Gabriel Guerra ou desintegração”, narrado num tom dorido que expõe a mágoa de uma geração de ideais traídos. A sensação, por vezes, é a de que somos apresentados a figuras que são cópias do mundo dito real, como se A. M. Pires Cabral anunciasse um cardápio de singularidades e, por desfeita (e espírito crítico), nos servisse imitações em bandeja irónica: autores obscuros de ego sequioso à espera da “recensãozinha” que nunca chega, autoproclamados escritores e conferencistas, yes-mans, académicos que carregam no corpo “o demónio da especialização”, como diria o narrador de “O Porco de Erimanto e outras fábulas” (2010), distinguidas com o Prémio Camilo Castelo Branco.
Enfim, como se participássemos de uma visita de reconhecimento a territórios já cartografados, mas nem por isso de menor ou pouco original valor narrativo. Um desses territórios, há muito rendido àquele produto romanesco que “cheira ao desinfectante das piscinas”, é o da edição, satirizado, de viseira bem aberta, através do Dr. Ivo Farrajota, “adepto incondicional do sistema vigente, no que toca ao ciclo vital do livro: gráfica – centro comercial – guilhotina […] Ele próprio lê pouco e o que lê não vai muito além de Dan Brown e do seu principal epígono português, Rodrigues dos Santos (dos livros de Margarida Rebelo Pinto e quejandos por acaso não gosta)”.
“A grande literatura já lá vai”, solta com convicção o Dr. Farrajota, a quem recomendamos, em jeito de desmentido, A. M. Pires Cabral e estas suas “Singularidades” e, já agora, uma visita à Cotovia para desenfastiar da literatura descartável que ajuda a produzir.  


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