sexta-feira, 5 de maio de 2017

MIGALHAS TAMBÉM É PÃO,por Júlia Guarda Ribeiro

Foto de Aníbal Gonçalves
Quando era pequenita ia com a minha mãe à segada mas, com sete ou oito anos, não sabia pegar na ceitoira. O meu trabalho era levar o caneco de água à minha mãe e a qualquer outra segadora ou segador que não tivesse filhos ali na segada.
No final de um corte nós, os raparigos , tínhamos outro trabalho, bem mais importante: corríamos em bando ao "rebusco da espiga", isto é, íamos apanhar aqui e ali, as espigas que as mães, por acaso ou adrede, haviam deixado cair. Não se pense que era trabalho de todo fácil, pois o restolho arrascanhava milhentas vezes as nossas pernitas de canivete e com o calor os arranhões ardiam. 
Hoje vejo crianças rebuscando, por entre imundices, restos de comida nos caixotes do lixo.
Prefiro o " rebusco da espiga". 
Júlia Guarda Ribeiro

8 comentários:

  1. Quem tem vergonha do passado é indigno do futuro...Parabéns minha querida Senhora pela sua tão grande nobreza de Alma!
    Com um enorme beijo de amizade e admiração.
    Irene Garcia

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  2. Oh Maria já foste ao palheiro escolher o melhor colmo para fazer os vincelhos?
    Não te preocupes que já está de molho ali naquele pocinho do ribeiro onde habitualmente adoçámos os tremoços para a garotada pela festa.

    Nas vésperas da segada do centeio e do trigo ,mais tardego ,por ter sido semeado em terra mais forte (em linguagem prosaica e rural " de renovo") era ver a azáfama de minha mãe e de algumas vizinhas- pois a torna de igual serviço não demoraria muito a ser compensado, de forma altruista e sem contar horas ou centavos dos pouco que havia -, a retirar do molho as partes mais resistentes do centeio .

    Este era guardado religiosamente no "sotão" do palheiro que também servia de abrigo aos animais nos invernos rigorosos. E , a azáfama continuava em ripar os caules e fazer-lhes uma laçada cuja resistência era posta à prova com duplo esticão de punhos femininos sincronizados e fortes de mulheres valentes.

    Se fossem duzentos daria para quarenta pousadas ( conjunto de quatro feixes de pão ceifados) que no Felgar eram de cinco. Também ouvia dizer ao velhote que por terras de Miranda, acolhedora de " ratinhos" transmontanos em tempo de grandes canseiras e de necessidades..

    Pela manhã , quando a estrela boieira se perdia no firmamento depois de ter sido desde o sol-posto a " estrela da manhã, os homens, camaradas e filhotes tudo estava preparado para iniciar a embelga.

    O mais experiente abria a contenda. Lenço vermelho ao pescoço para acautelar os suores certos depois das dez da manhã. Foices afiadas em esmeril ou em lima a condizer. Se fosse ceitoura então a lâmina era denticulada. Se a folha fosse lisa era a " galega"..

    Cuidado rapaz que essa é perigosa e lambe-te o dedo enquanto o diabo esfrega um olho,..

    Não se preocupe já estou habituado e as dedeiras são de cabedal enfeitadas com tachas cromadas e resistentes na ponta..

    Mas se não houvesse de cabedal a argúcia e a necessidade artesâ resolvia o problema com dedeira de cana esfacelada e pontíaguda.

    No lanço da ceifa não podia haver atrasos. Havia que alcançar com a mão esquerda o cereal que mecanicamente a direita cortava e num gesto de dobrar quadris alinhá-lo por detrás das costas mas com alinhamento e compostura.

    Antes que o sol abrasivo fosse deitar por terra o trigo que tantos trabalhos exigiu e ainda exigiria até que fosse descansar na tulha, era tempo do " atador" prender à cintura uma ou duas dúzias de vincelhos e fazer os molhos. Todo o corpo trabalhava e o remate final era um apertão valente de joelho , quantas vezes a carne do atador era avivada com o toque final na palha e o arroxo a dar o último aperto.

    Rapazes vamos parvejar pois vão sendo horas!. No chão - irmão- estendia-se toalha de linho se a houvesse. Como recurso umas sacas, pedras planas e a preceito ou então a manta de orelos, como aquelas que as mulheres de Poiares e outras tão bem sabiam fazer. estendia -se o casqueiro de dois quilos, feitos na última fornada da semana, acompanhado do melhor presunto, do queijo de ovelha , de cabra, o salpicão, dos últimos com meio ano de idade baptizado e curado em pote de barro vidrado do Felgar e pejado de bom azeite . E as " mentirosas" mas sápias azeitonas também eram companhia certeira. O vinho não podia faltar. E do tinto! Mas cuidado que ele trepa por um homem acima pois é forte e até pica o ladrão.

    Reconfortados os estómagos era reiniciar outro lanço. E não se podia olhar para trás não fosse o caso de, pela tarde Santa Bárbara se esquecer dos aldeões e as trovoadas de junho/julho viessem varejar em cinco minutos o que semeado,em pó de Setembro ,poderia agora arruinar sem dó nem compaixão os trabalhos e as esperanças de quase um ano...

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  3. Ireninha:
    Obrigada pela sua apreciação de amiga.

    Beijinho
    Júlia

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  4. Amigo Artur Salgado:

    O seu texto é extraordinário. É único pelo vocabuláro colorido e exacto e único pelo conhecimento revelado sobre as segadas e que só a experiência dá.
    Em minha opinião, este texto não deve ficar relegado para um simples comentário. Merece ser postado, com algumas belas fotografias a acompanhá-lo , para que todos os visitantes o leiam. O que não acontece com os comentários.
    Lelo, por favor, se estiver na sua mão, trate disso.

    Abraços
    Júlia

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  5. Á que tempos não ouvia a palavra adrede, gostei muito deste texto, porque também andei ao rebusco da espiga e da azeitona.

    Obrigada.
    Uma Maria

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  6. Muito comovido e agradecido pelo elogio vindo, da " nossa patrona" das letras , se me permite o epíteto com epitáfio a acontecer num futuro distante..Obrigado e Saúde para todos,,, com as cobrideiras e fazedores de rilheiros no coração e nestes " Farrapos...

    Um Grande Abraço transmontano aqui do Ribatejo até Leiria ou Corredoura...

    A. Salgado

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  7. ( ..) comentário a " Migalhas também é pão".

    Da Segada até à Eira..

    Pelo cair da tarde e, após renovada merenda, antepasto da ceia que seria pelas dez da noite, era tempo de fazer o(s) rilheiro(s). Não era um qualquer que o fazia!

    Primeiramente, a assentada de meia dúzia de molhos,encavalitados, longitudinalmente, um sobre o outro e sucessivos, sem que as espigas tocassem no chão. As operações seguintes consistiam em ajustar de forma travejada os feixes, fiada após fiada sob a batuta do rilheirador ajoujado e de joelho direito a dar consistência à arquitectura trapezoidal e cerealífera.

    As cabeceiras serviam de contrafortes ,enquanto, gradualmente se ia afunilando para terminar em coruto, a fim de proteger ao máximo o pão futuro de cada dia, e assim mais protegido ficaria de chuva .

    Agora era o momento de colocar algumas pedras sobre os últimos molhos para a segurança ser mais eficaz. Por vezes o plástico, coisa mais moderna, também poderia ser utilizado.

    No dia seguinte ou próximos , então sim, o rebusco da espiga e do cornelho animava garotada e crescidos que competiam com as ovelhas , lampeiras e de rabadilha contente na conquista da espiga mais farta. O seu resultado era enxergar , passados alguns dias,seus pelos alvos nas raízes cutâneas e azeitadas do ludro .

    E o queijo da espiga mostrava-se prazenteiro ,sem seus olhinhos marotos que não gostavam de sabor ou textura encortiçada, e prometia camaradagem e mesa farta na próxima apanha do feno debaixo de frondoso freixo ou de olmo,dos muitos que havia e sustentadores de porcos e outros animais.
    E, da acarreja, auxiliando o saudoso Litó, olho meu pulso esquerdo e nele acaricio força em ossinhos de estudante tenrinho resultante de dar molhos de pousada, em ponta de forquilha afiada,esperando percorrer dois metros de altura até que o meu mestre-companheiro arranjasse lugar no carro de bois, puxado por valente parelha de machos.

    A próxima paragem seria a Eira do Prado, onde rodilha de palha calcada por bocado de granito demarcava o lugar sagrado da meda que uma após outra formavam uma alameda, que vista de longe se parecia com uma aldeia iroqueses ou outros ìndios americanos...

    Grande espiga, mesmo sem rebusco, mas de estoicismo , com alegria e companheirismo. E assim se ganhava a vida mas honrada!
    Na condição de homens analfabetos mas profundamente religiosos e previdentes antes da fumaça dos descanso e da paz , era vê-los cavar em redor do rilheiro não fosse o fogo mostrar-se devorador..

    A sinalizar a crença genuína e a gratidão para com o seu ou seus deuses uma cruz de pau tosco, ornada com meia dúzia de espigas, era espetada no centro do rilheiro como símbolo da esperança..

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  8. Amigo Artur:

    Mais um texto notável , que revela um tão profundo conhecimento, e só possível por espelhar toda a vivência, toda a experiência riquíssima do seus autor. O vocabulário é genuíno, "telúrico" como diria o Torga.
    Creia que sinto que o meu textinho é ridículo, quando comparado com dois textos formidáveis e que afinal se encontram no lugar indevido dos comments. Deviam estar postados no corpo do Blog. Não sei como isso se faz, mas deve ser possível.

    Um grande abraço
    Júlia Ribeiro

    PS - Grata pelos elogios, que não mereço, e são ditados pela amizade. E pela amizade lhe digo Bem haja.

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