domingo, 14 de maio de 2017

O solar com 365 portas e janelas,por Tiago Patrício

Numa aldeia chamada Castelo Branco viveu um professor dedicado, que escrevia ensaios rigorosos sobre a origem da linguagem nos seres humanos, a sua evolução geográfica e temporal nas diferentes ramificações regionais. Estudava mais de 15 anos, vários manuscritos sobre a ligação entre a linguagem do planalto mirandês e a do antigo leonês do outro  lado  do  rio  Douro,  quando  numa  tarde  de Verão,  por  entre  alguns  manuscritos amarelados viu um minúsculo grilo branco passear-se entre as iluminuras. Aproximou a vista do recanto da folha onde o insecto se movia com pertinácia e ficou muito tempo a contemplar os seus movimentos graciosos e a sua armadura de quitina. Pegou numa lupa e ficou atento à cadência das antenas e dos apêndices quase até ao fascínio, depois nas patas e peças bucais da mesma cor e graciosidade. Quando a luz do dia desceu a partir da janela, levantou os olhos para fora da sala e acendeu o candeeiro, quando olhou de novo para a secretária, o pequeno grilo tinha desaparecido por entre os outros papéis espalhados na mesa de trabalho.
A recordação de ternura por cada movimento do grilo, que caminhava indiferente e cândido aos registos ou à literatura entre os pesados volumes da história da ngua, fê-lo regressar ao início das coisas, à persistência da memória, ao compasso assimétrico entre manter uma família e um espaço suficiente para uma descendência imaginária e a escolha solitária das ciências exactas e da escrita, numa reverência à história antiga.
A sua casa era um jazigo do tamanho de um solar com 365 portas e janelas, mandado construir pelo avô, para harmonizar  o trabalho do campo  com a vida dos filhos e as estações do ano, que agora estava vazia de gente e forrada de livros para o isolar da passagem do tempo. Conhecia a grafia e a fonética de todos os alfabetos usados na Europa ocidental, para além do Árabe clássico e mesmo alguns dialectos africanos das colónias portuguesas.  As  suas  viagens  antes  do  isolamento  não  foram  apenas  uma  perda irremediável de tempo ou de energia e trouxe consigo o peso de muitas vidas que tentava reproduzir contra os seus olhos cansados e as mãos trementes.

o sol tinha descido abaixo do nível da janela quando começou a desenhar o grilo branco de memória e a seguir pegou ao acaso numa das folhas dos manuscritos, dobrou-a várias vezes até obter a figura aproximada de um grilo preenchido com letras de imprensa. Depoipassou à sala onde mantinha a colecção de artrópodes em pequenas caixas de vidro e retirou com cuidado a pilha de livros que ocupava o vão da pequena janela, que o avô só usava nos anos bissextos e ficou de livros nos braços a olhar os campos de trigo e as papoilas complementares na mancha verde do ocaso. Pousou os livros e abriu a janela com esforço e sentiu o vento fresco de Abril na face cansada e deixou a folha de papel em forma de grilo no parapeito,  para que fosse levada pela aragem da tarde. Quando voltou  às borboletas, escaravelhos, coleópteros, aracnídeos e grilos pretos fixos com alfinetes, perdeu o sentido de utilidade nos dias passados a seleccionar, catalogar e conservar os animais para o arquivo encerrado naquela sala sem vida.
Quando desceu as escadas a custo encontrou o caseiro à entrada com o chapéu torcido nas mãos e o rosto contraído, com o susto de ver a janela abrir-se num ano regular e o receio do patrão estar contrafeito com alguma coisa.
Depois dessa tarde, o Homem, deixou de subir aos andares de cima, escolheu um dos quartos mais soalheiros no rés-do-chão, reabriu o salão de jantar e dedicou-se a ver passar o tempo no alpendre das traseiras e a apreciar o a azáfama da mulher e dos filhos do caseiro na horta ou das carroças dos aldeões no lado da estrada.
Muitos anos depois da sua morte, um estudioso das bibliotecas e arquivos perdidos que vivia em França, farejou o rasto desse homem através de uma conversa ocasional escutada num bar de emigrantes portugueses, que descreviam essa casa com 365 portas e janelas, entulhada de livros e bugigangas até ao tecto. Esse professor e coleccionador exótico de livros antigos estava dado como perdido para os estudiosos na matéria, assim como toda a sua colecção, porque as referência apontavam para um território difuso entre Castela-Leão, Trás-os-Montes e as Beiras.
Com o orçamento  de um projecto de estudo para reencontrar  a colecção,  o estudioso decidiu embarcar no Sud-Express até ao local assinalado no mapa com o nome da terra escutado aos emigrantes, Castelo Branco. Quando chegou a Salamanca, depois de três dias de viagem nas liteiras entabulou conversa com um Engenheiro Civil português que regressava de um mês de férias em Paris e vinha maravilhado com a paisagem humana parisiense. Contou-lhe, ainda surpreendido, a entrevista com uma empregada de uma perfumaria com quem tinha passeado no Sena e o tinha demovido de ir à Ópera ver as Valquírias de Wagner, por ser uma peça muito longa e pesada, para um português acabado de chegar à cidade incandescente.

Quando se aproximavam do entroncamento  de Fuentes de San Esteban, o Engenheiro anunciou que ira sair e apanhar a ligação para Trás-os-Montes e o francês despediu-se dele com alguma pena por não poder prolongar a conversa, contou-lhe o motivo da viagem e o entusiasmo em estar tão próximo de encontrar a biblioteca de 365 portas e janelas. Nessa altura os olhos do Engenheiro brilharam e com uma pancada forte nas costas, disse-lhe que saísse já ali porque a casa ficava numa aldeia perto da fronteira e não na cidade da Beira Baixa.
O francês ficou atrapalhado mas confiou na palavra e nas informações adicionais que o Engenheiro avançava sobre a casa cheia de livros e abandonada há vários anos, enquanto arrumava as malas e a roupa de viagem sob a excitação do outro. Era uma tarde fria de Junho que os esperava, quando ajudados pelos carregadores, entraram na carruagem de 1ª classe do comboio a vapor que seguiria até à linha do Douro.
Depois de la Fregeneda, na zona dos precipícios, túneis extensos e pontes metálicas sobre o rio Águeda ao fundo, o francês começou a fartar-se das explicações matemáticas sobre a engenharia ferroviária e a recear pela segurança com as oscilações da pesada máquina a vapor sobre as passagens estreitas nas veredas. Depois da Barca d’Alva o comboio seguiu mais a direito e rente ao rio e aquele susto inicial deu lugar a um certo apaziguamento pela presença sideral da paisagem. Trocaram para uma automotora de via estreita na estação do Pocinho e deixaram o Douro para trás numa subida lenta e íngreme até ao planalto. Nessa altura o francês já tinha aceite o convite para pernoitar na casa do engenheiro em Carviçais e seguir no carro dele até Castelo Branco no dia seguinte.
Foi uma noite longa, depois do jantar com os pais do Engenheiro no serão à lareira, o estudioso francês teve de satisfazer a curiosidade do pai e do filho que traduzia as inquietações do velho pelos maus exemplos que chegavam de França. A casa ficava mesmo ao lado da igreja pesada de granito e durante a noite teve dificuldade em adaptar-se ao o toque do relógio da igreja de 15 em 15 minutos. Na manhã seguinte acordou com o som das carroças e das ferraduras dos animais na calçada, levantou-se para tomar o pequeno almoço e não escondeu o espanto pela mesa com pratos cheios de batatas, feijão, carne de porco, couves, pão e vinho tinto.
Arrancaram de barriga cheia, depois de uma pequena visita obrigatória pela aldeia e no resto do caminho o Engenheiro insistia em explicar os nomes e a história das aldeias por onde passavam. Cruzaram-se com o comboio na estação de Freixo de Espada-à-Cinta e com muitas pessoas que caminhavam descalças ou montadas nos burros pela estrada nessa manhã e ficaram na memória do francês.
Viajavam devagar devido às curvas e à largura do caminho esburacado e por vezes o Engenheiro contava episódios da viagem a Paris e de como os achava muito cultos. Confessou que deixou os museus para quando estivesse reformado e queixou-se apenas dos empregados de balcão que exigiam sempre gorjeta e das prostitutas que se despiam depois do dinheiro na mão.
Quando passaram a placa com o nome da aldeia o francês começou a olhar em todas as direcções para encontrar o solar, mas uma carroça carregada de nabos que seguia à frente do carro impedia-os de ultrapassar. Nos breves minutos de impaciência, o estudioso francês ficou para sempre a lembra-se do olhar silencioso da mulher de negro sentada na carga, de frente para eles, com a cabeça coberta e o nariz disfarçado entre as rugas da cara escura, que extinguiam a voz esganiçada do Engenheiro e o atingiam num estremecimento que subia aos olhos. Depois a carroça cortou por um caminho à direita e desapareceu por trás de casas ou palheiros onde havia roupa estendida à porta.
Quando o solar apareceu debruçado sobre a estrada os pensamentos do francês já estavam tão perturbados pelo cansaço da viagem e a ruína do país, que só reparou no casarão a contraluz pela cotovelada do Engenheiro. Estava abandonado, com uma parte do telhado caída mas uma fogueira próxima denunciava uma certa actividade.
Quando saíram do carro em direcção ao portão, o relógio da aldeia dava o sinal do meio-dia e à volta da fogueira um homem preparava o almoço e protegia a cara das labaredas amarelas, azuis e esverdeadas, naquele dia de Primavera. Havia outros que transportavam cimento e tijolos para dentro da casa e o francês pediu ao engenheiro para lhes perguntar pelo dono da casa, enquanto reparava que as portas e as janelas escuras eram como órbitas de uma casa vazia. Depois encaminhou-se até à caixa de onde os trabalhadores tiravam gravetos para atiçar as chamas e começou a tropeçar em restos de livros espalhados pelo chão, com as páginas rasgadas e dissolvidas na lama. Desesperado pelos risos alarves dos homens numa ngua que não compreendia, confirmou que estavam a alimentar a fogueira com livros inteiros que se consumiam em chamas de várias cores e crepitavam em nguas mortas e  discursos ininteligíveis de pânico ou libertação.

Atirou as mãos à cabeça e afastou-se da casa ao longo do muro a disparar nomes estrangeiros e frases incompletas até chegar ao início de um bosque fechado. Sem querer entrar na sombra voltou a olhar o casarão iluminado pelo sol forte do meio-dia e sentou-se na erva do terreno, com os joelhos encostados ao peito e rodeado pelo crepitar de grilos brancos que saiam das tocas e andavam de cá para lá, como se há muito não escutassem a vocalização característica da angústia num homem encurvado.

 Tiago Patrício

6 comentários:

  1. Julia Guarda Ribeiro:
    Já conheci tristeza igual. Valha-nos o conto do Tiago Patrício: uma maravilha.

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  2. Maria Fátima Baptista Campeão :
    Emocionante! De tirar o fôlego, vou levar com um Abraço Solidário.

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  3. Paulo Patoleia Patoleia:
    Muito bem escrita, belíssima narração! uma maravilha. Parabéns Tiago Patrício.

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  4. Parabéns ao Tiago Patrício pela descrição-, mesclada de imaginação e realismo , porventura aplanada com aspectos biográficos seus ou familiares- a qual nos faz recordar realidades brutais de desassossego cultural. As labaredas dos labregos ( com ou sem culpa) mais não serão que o reflexo daquilo a que Antero descreveu em " As causas da decadência de Portugal ". As Conferências do Casino da Geração de , vá - se la saber se por culpa dos Torquemada ou dos continuadores do Cardeal D.Henrique (O Inquisidor Geral).... retiramos do admirável texto do Patrício outra realidade estrutural que nos caracteriza, quando o " seu Engenheiro " fala nas primas das do Moulin Rouge a convidá-lo para a basófia estroina , enquanto o erudito francês se preocupava e envergonhava com a despreocupação das nossas elites em homem de engenharia retratado...Que o Edgar Cardoso, projectista da ponte de Barca de Alva,em 1955, onde quer que ele esteja, possa ser lembrado e seja exemplo de como se deve construir, reconstruindo em cada 365 dias do tempo devir, a incúria e a fanfarronice do nosso empobrecimento....Que os grilos axadrezados e prodigiosos da criação do Tiago continuem efervescentes e a colorir, com seus cânticos quentes , a preocupação do erudito francês ,afastando com seus chinfrins a abjecta ignorância que nos vai caracterizando.. Obrigado Tiago.


    A. Salgado

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  5. Leonel Serra :
    Belíssimo texto. Parabéns.
    A minha Mãe é natural das Quintas das Quebradas e,como tal conheço bem Castelo Branco inclusivé tenho Familiares nesta Aldeia e,lembro-me de ser garoto (quando visitávamos os meus Tios) e,de a minha Mãe me dizer que esta Mansão ou Palácio (não sei designar) tinha e tem tantas portas e janelas como dias tem o ano e esta narração vem confirmar isso mesmo,pois pessoalmente nunca as contei,mas acreditava e acredito na minha Mãe . Isto tudo para dizer,que Trás-os-Montes (de onde sou Natural),tem um Património muito rico,quer em beleza quer em quantidade e aconselho vivamente,principalmente as pessoas que não conhecem e muitas vezes falam e escrevem sem conhecimento de causa,a visitarem esta BELÍSSIMA região que é Trás.os-Montes.
    Bem hajam por estes textos e estas fotos.

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  6. Um abraço de gratidão para todos e também para o Leonel pelo magnífico Blog.
    Tiago

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