Numa aldeia chamada Castelo Branco viveu um professor
dedicado, que escrevia ensaios
rigorosos sobre a origem da linguagem nos seres humanos, a sua evolução geográfica e temporal nas diferentes ramificações regionais. Estudava há mais de 15 anos,
vários manuscritos sobre
a ligação entre a linguagem do planalto mirandês e a do antigo leonês do outro
lado
do rio Douro, quando
numa tarde de Verão, por entre alguns manuscritos
amarelados viu um minúsculo grilo branco passear-se entre as iluminuras. Aproximou a
vista do recanto da folha onde o insecto se
movia com pertinácia e ficou muito tempo a contemplar os seus movimentos graciosos e a sua armadura de
quitina. Pegou numa lupa e
ficou atento à
cadência das antenas e dos
apêndices quase até ao fascínio, depois
nas patas e peças bucais da mesma cor e graciosidade. Quando a luz do dia desceu a partir da janela, levantou os olhos para fora
da sala e acendeu o candeeiro, quando
olhou de novo para a
secretária, o pequeno
grilo tinha desaparecido por entre os outros papéis espalhados na
mesa de trabalho.
A recordação de ternura por cada movimento do grilo, que caminhava indiferente e cândido
aos registos ou à literatura entre os pesados volumes da história da língua,
fê-lo regressar ao início das coisas, à persistência da memória, ao compasso assimétrico entre manter uma família e
um espaço suficiente para uma descendência imaginária e
a escolha solitária das ciências exactas e
da escrita, numa reverência à história antiga.
A sua
casa era um jazigo do tamanho de um solar com 365
portas e janelas, mandado
construir pelo avô, para harmonizar
o trabalho do campo
com a vida dos filhos e as estações do ano, que agora estava vazia de gente e forrada
de livros para o
isolar da passagem do tempo. Conhecia a
grafia e a fonética de todos os alfabetos usados na Europa
ocidental, para além do Árabe clássico e mesmo alguns dialectos africanos das colónias portuguesas. As suas
viagens antes
do isolamento não
foram apenas
uma perda irremediável de tempo ou de energia e trouxe consigo o peso de
muitas vidas que
tentava
reproduzir contra os seus
olhos cansados e as
mãos trementes.
Já o
sol tinha descido abaixo do nível da janela quando começou a desenhar
o grilo branco de memória e a seguir pegou ao acaso numa das folhas dos manuscritos, dobrou-a
várias vezes até obter a figura aproximada de um grilo preenchido com letras de imprensa. Depois passou
à sala onde mantinha a colecção
de artrópodes em pequenas caixas de vidro e
retirou com cuidado a
pilha de livros que ocupava
o vão da pequena janela, que o avô só
usava nos anos bissextos e ficou de livros nos braços a olhar os campos de trigo e as
papoilas complementares na mancha verde do ocaso. Pousou os livros e abriu a janela com
esforço e sentiu o vento fresco de Abril na face cansada
e deixou a folha de papel em forma
de grilo no parapeito, para que fosse
levada pela aragem da tarde. Quando voltou às borboletas, escaravelhos, coleópteros, aracnídeos e grilos pretos fixos com alfinetes, perdeu
o sentido de utilidade nos dias
passados a seleccionar, catalogar e conservar os animais para
o arquivo encerrado naquela sala sem vida.
Quando
desceu as escadas a custo encontrou o caseiro à entrada com o chapéu
torcido nas mãos e
o rosto contraído, com o susto de
ver a janela abrir-se
num ano regular e o receio do
patrão estar contrafeito com alguma coisa.
Depois dessa tarde, o Homem, deixou de subir aos andares de cima, escolheu um dos
quartos mais soalheiros no rés-do-chão, reabriu o salão de jantar e dedicou-se a ver
passar o tempo no alpendre das traseiras e a apreciar o a azáfama da mulher e dos filhos do caseiro
na horta ou das carroças dos aldeões no lado da estrada.
Muitos anos depois da sua morte, um estudioso das bibliotecas e arquivos perdidos que vivia em França, farejou o rasto desse homem através de
uma
conversa ocasional escutada
num bar de emigrantes portugueses,
que descreviam essa casa
com 365 portas e janelas, entulhada de
livros e bugigangas até
ao tecto. Esse professor e coleccionador exótico de livros antigos estava
dado como perdido para os estudiosos na matéria, assim como toda
a sua colecção, porque as referência apontavam para um território difuso entre Castela-Leão,
Trás-os-Montes e as Beiras.
Com o orçamento de um projecto de estudo para reencontrar a colecção,
o estudioso decidiu embarcar no
Sud-Express até ao local assinalado no
mapa com o nome da terra
escutado aos emigrantes, Castelo Branco. Quando chegou a
Salamanca, depois de três dias de viagem nas liteiras entabulou conversa
com um Engenheiro Civil português que regressava de um mês de férias em Paris e vinha maravilhado com a
paisagem humana parisiense. Contou-lhe, ainda
surpreendido, a entrevista com uma
empregada de uma perfumaria com quem tinha passeado no Sena e o
tinha demovido de ir à Ópera ver as Valquírias de Wagner, por ser uma peça muito longa e pesada, para um português acabado de chegar à
cidade incandescente.
Quando se aproximavam do entroncamento de Fuentes de San Esteban, o Engenheiro
anunciou que ira sair e apanhar
a ligação para Trás-os-Montes e
o francês despediu-se dele com alguma pena por
não poder prolongar a conversa, contou-lhe o motivo da viagem e
o entusiasmo em estar tão próximo de encontrar a biblioteca de 365 portas e
janelas. Nessa
altura os olhos do Engenheiro brilharam
e com uma pancada
forte nas costas, disse-lhe que
saísse já ali porque a casa ficava numa aldeia perto da fronteira e não na cidade da Beira Baixa.
O francês ficou atrapalhado mas confiou na palavra e nas informações adicionais que o Engenheiro avançava sobre a casa cheia de livros e
abandonada há vários anos, enquanto
arrumava as malas e a roupa de viagem sob a excitação do outro. Era uma tarde fria de Junho que os esperava, quando ajudados pelos carregadores, entraram na carruagem de 1ª
classe do comboio a
vapor que seguiria até à
linha do Douro.
Depois de la Fregeneda,
na zona dos precipícios, túneis extensos e pontes metálicas sobre o rio Águeda ao fundo, o francês começou a
fartar-se das explicações matemáticas sobre a
engenharia ferroviária e
a recear pela segurança com as oscilações
da pesada máquina a vapor sobre as
passagens estreitas nas veredas. Depois da Barca
d’Alva o comboio seguiu mais a direito e rente
ao rio e aquele susto inicial deu lugar a
um certo apaziguamento pela
presença sideral da paisagem. Trocaram
para uma automotora de
via estreita na estação do Pocinho e deixaram o
Douro para trás numa subida lenta e íngreme até ao planalto. Nessa
altura o francês já tinha aceite o convite para pernoitar na casa do engenheiro em Carviçais
e seguir no
carro dele até Castelo Branco
no dia seguinte.
Foi uma noite longa,
depois do jantar com
os pais do Engenheiro no serão à lareira, o
estudioso francês teve de satisfazer
a curiosidade do pai e do filho que traduzia as inquietações do velho pelos maus exemplos que chegavam de França.
A casa ficava mesmo ao lado da
igreja pesada de
granito e durante a noite teve dificuldade em adaptar-se
ao o toque do relógio da igreja de 15 em 15 minutos. Na
manhã seguinte acordou com o
som das carroças e das ferraduras dos animais na calçada, levantou-se para tomar o pequeno almoço e não escondeu o espanto pela mesa com pratos cheios de batatas, feijão, carne de porco, couves, pão e vinho
tinto.
Arrancaram de barriga cheia, depois de uma pequena
visita obrigatória pela aldeia e no resto do caminho o Engenheiro insistia em explicar os nomes e
a história das aldeias por onde
passavam. Cruzaram-se com o comboio na estação de Freixo de Espada-à-Cinta e com muitas pessoas que caminhavam descalças ou montadas nos burros pela
estrada nessa manhã e
ficaram na memória do
francês.
Viajavam devagar devido às curvas e à largura do caminho esburacado
e por vezes o Engenheiro contava episódios da viagem a Paris e de
como os achava muito cultos. Confessou que deixou os museus para quando
estivesse reformado e queixou-se apenas dos empregados de balcão que exigiam sempre gorjeta e das prostitutas que só se despiam
depois do dinheiro na mão.
Quando
passaram a placa com o nome da
aldeia o francês
começou a olhar em todas as direcções para encontrar o solar, mas uma carroça
carregada de nabos que seguia à frente do carro impedia-os
de ultrapassar. Nos breves minutos de impaciência, o estudioso francês
ficou para sempre a lembra-se do olhar silencioso da mulher de
negro sentada na carga, de frente para eles, com a cabeça coberta e o nariz disfarçado entre as rugas da cara escura, que extinguiam a voz esganiçada do Engenheiro e o atingiam num estremecimento que subia aos olhos. Depois
a carroça cortou por um caminho à
direita e desapareceu por trás de casas ou palheiros onde havia roupa estendida à
porta.
Quando o solar apareceu debruçado sobre a estrada os pensamentos do francês já estavam tão perturbados
pelo cansaço da viagem e a ruína do país, que só reparou no casarão a
contraluz pela cotovelada do Engenheiro. Estava abandonado, com uma parte do telhado caída mas uma fogueira próxima denunciava uma certa actividade.
Quando
saíram do carro em direcção ao portão, o relógio da aldeia dava o
sinal do meio-dia
e à volta da fogueira um homem preparava
o almoço e protegia a cara das labaredas
amarelas, azuis e
esverdeadas, naquele dia de
Primavera. Havia outros que
transportavam cimento e tijolos para dentro da
casa e o francês pediu ao engenheiro para lhes perguntar pelo dono da
casa, enquanto reparava que as portas e as janelas escuras eram como órbitas de uma casa vazia. Depois encaminhou-se até à caixa de onde os trabalhadores
tiravam gravetos para atiçar as chamas e começou a tropeçar em restos de livros espalhados pelo chão,
com as páginas rasgadas e
dissolvidas na lama. Desesperado pelos risos alarves dos
homens numa língua que não compreendia, confirmou que estavam a alimentar a fogueira
com livros inteiros que se consumiam em chamas de várias cores e crepitavam em línguas mortas e discursos
ininteligíveis de
pânico ou libertação.
Atirou as mãos à cabeça e afastou-se da
casa ao longo do muro a disparar nomes
estrangeiros e frases incompletas até chegar ao início de um bosque fechado. Sem querer
entrar na sombra voltou a olhar o casarão
iluminado pelo sol
forte do meio-dia e sentou-se na
erva do terreno, com os
joelhos
encostados ao peito e rodeado pelo crepitar de grilos
brancos que saiam das tocas e andavam
de cá para lá, como se
há muito não escutassem a
vocalização característica da angústia num homem encurvado.
Tiago Patrício
Julia Guarda Ribeiro:
ResponderEliminarJá conheci tristeza igual. Valha-nos o conto do Tiago Patrício: uma maravilha.
Maria Fátima Baptista Campeão :
ResponderEliminarEmocionante! De tirar o fôlego, vou levar com um Abraço Solidário.
Paulo Patoleia Patoleia:
ResponderEliminarMuito bem escrita, belíssima narração! uma maravilha. Parabéns Tiago Patrício.
Parabéns ao Tiago Patrício pela descrição-, mesclada de imaginação e realismo , porventura aplanada com aspectos biográficos seus ou familiares- a qual nos faz recordar realidades brutais de desassossego cultural. As labaredas dos labregos ( com ou sem culpa) mais não serão que o reflexo daquilo a que Antero descreveu em " As causas da decadência de Portugal ". As Conferências do Casino da Geração de , vá - se la saber se por culpa dos Torquemada ou dos continuadores do Cardeal D.Henrique (O Inquisidor Geral).... retiramos do admirável texto do Patrício outra realidade estrutural que nos caracteriza, quando o " seu Engenheiro " fala nas primas das do Moulin Rouge a convidá-lo para a basófia estroina , enquanto o erudito francês se preocupava e envergonhava com a despreocupação das nossas elites em homem de engenharia retratado...Que o Edgar Cardoso, projectista da ponte de Barca de Alva,em 1955, onde quer que ele esteja, possa ser lembrado e seja exemplo de como se deve construir, reconstruindo em cada 365 dias do tempo devir, a incúria e a fanfarronice do nosso empobrecimento....Que os grilos axadrezados e prodigiosos da criação do Tiago continuem efervescentes e a colorir, com seus cânticos quentes , a preocupação do erudito francês ,afastando com seus chinfrins a abjecta ignorância que nos vai caracterizando.. Obrigado Tiago.
ResponderEliminarA. Salgado
Leonel Serra :
ResponderEliminarBelíssimo texto. Parabéns.
A minha Mãe é natural das Quintas das Quebradas e,como tal conheço bem Castelo Branco inclusivé tenho Familiares nesta Aldeia e,lembro-me de ser garoto (quando visitávamos os meus Tios) e,de a minha Mãe me dizer que esta Mansão ou Palácio (não sei designar) tinha e tem tantas portas e janelas como dias tem o ano e esta narração vem confirmar isso mesmo,pois pessoalmente nunca as contei,mas acreditava e acredito na minha Mãe . Isto tudo para dizer,que Trás-os-Montes (de onde sou Natural),tem um Património muito rico,quer em beleza quer em quantidade e aconselho vivamente,principalmente as pessoas que não conhecem e muitas vezes falam e escrevem sem conhecimento de causa,a visitarem esta BELÍSSIMA região que é Trás.os-Montes.
Bem hajam por estes textos e estas fotos.
Um abraço de gratidão para todos e também para o Leonel pelo magnífico Blog.
ResponderEliminarTiago