Com a expulsão dos judeus de Espanha, em 1492, ter-se-ão
verificado profundas alterações na paisagem humana de Trás-os-Montes onde entraram
e ficaram a viver muitas dezenas de milhares desses refugiados.
E, acrescentando estes aos que já antes habitavam nas muitas
judiarias que estão documentadas, concluir-se-á que uma grande percentagem da população
trasmontana no século de 500 era constituída por gente da nação hebreia.
Obrigados a abraçar a religião cristã, eles continuaram, na
generalidade, fiéis à crença de seus antepassados, praticando a religião
judaica no interior de suas casas, se bem que, pelo exterior, eles procurassem
dar provas de cristãos, frequentando as igrejas e mostrando-se cumpridores das
regras que lhe impunham. Este comportamento dúplice era, por vezes, perceptível
e escandaloso para a população cristã.
Com o argumento de fazer “reduzir” a gente marrana à fé
cristã e extinguir definitivamente o judaísmo do reino católico de Portugal,
foi criado o tribunal da Inquisição.
Naturalmente que as tensões entre os dois elementos da sociedade
trasmontana não resultava apenas da questão religiosa. Havia também muitos
problemas derivados da economia, com os cristãos a queixarem-se dos
exploradores e agiotas judeus. E havia também lutas políticas muito intensas,
se bem que, geralmente, surdas e recalcadas e, por isso mesmo, mais duradouras e
difíceis de resolver.
E se a Inquisição foi apresentada (e continua a ser considerada)
como um tribunal da fé e um instrumento da igreja católica, a verdade é que ela
foi também uma espécie de partido político (talvez até o partido único de
suporte ao poder) e tribunal constitucional, para usarmos a linguagem dos
nossos dias. Ao menos é isso o que para nós resulta, da leitura de largas
centenas de processos que já fizemos.
Com efeito, para se entrar numa universidade, para se
conseguir um emprego público, para se ser padre, para desempenhar um cargo de vereador
ou para se obter um título de nobreza era indispensável apresentar documento
passado pela Inquisição atestando que não tinha o
requerente qualquer gota de sangue judeu, até à quarta ou
quinta geração.
Por outro lado, para se fazer carreira política, o caminho
normal era a militância no partido da Inquisição. E essa militância revestia as
mais diversas formas. Podia ser a simples criada de servir que, para se vingar
dos patrões, ia denunciá-los ao abade, por gestos simples mas de cariz judaico.
Podia ser um jovem bacharel que queria singrar como advogado no tribunal da
comarca e anotava os que não trabalhavam ao sábado indo denunciá-los ao vigário
geral como judaizantes. Podia ser o clérigo que para alcançar o lugar de cura
de uma igreja, andava sempre a espiar os marranos da terra para ir contar ao comissário
regional da Inquisição. Podia ser o homem da nobreza que tudo fazia para obter
o vistoso colar de Familiar da Inquisição. Podia mesmo ser um marrano que, por
qualquer vil pretexto ou para singrar na vida, se metia a denunciar os da sua
nação.
Repare-se também que as autoridades civis da região, mesmo
as de mais elevada categoria, como eram os corregedores, tinham obrigação (ou
devemos dizer que era uma regalia!) de cumprir as ordens emanadas da
Inquisição. E se as medalhas de Familiares eram muito
disputadas pela gente da nobreza e da clerisia, mais
cobiçados seriam certamente os cargos de Comissários da Inquisição.
Por tudo isso, logo que a Inquisição fazia as primeiras
prisões em uma terra, o medo apoderava-se de toda a gente da estirpe hebreia. E
muitos fugiam para não serem presos. E os que eram presos e regressavam à terra,
nunca mais se livravam do estigma de judeu e isso, por vezes, custava mais a
suportar do que os horrores da cadeia. Por isso tomavam
igualmente os caminhos da fuga para o litoral e o sul do
País e, mais frequentemente, para o estrangeiro.
Estes movimentos de fuga atingiram proporções alarmantes,
com resultados catastróficos em muitas terras do Nordeste Trasmontano. Em Vila
Flor, por exemplo, em apenas duas décadas, a quarta parte dos moradores deixou
terra, reduzindo-se de 400 para 300 o
número de seus agregados familiares (fogos). Tempos depois, em 1721, as próprias
autoridades camarárias, escreviam para a Academia Real de História:
– Foi povoação de 500 vizinhos e
hoje se acha tão diminuta que tem somente 259, a respeito dos inumeráveis
cristãos-novos que dela se expulsaram, não sem notável detrimento dos mais
moradores.
Bragança e Torre de Moncorvo foram outras terras igualmente
martirizadas pela Inquisição. Tal como Chacim e Mogadouro que, no ano de 1652,
por exemplo, contava umas 6 dezenas de seus marranos metidos nos calabouços da
inquisição. Sobre esta terra, foram os próprios
inquisidores de Coimbra que fizeram escrever o seguinte
testemunho:
– É terra que arde em judaísmo,
onde a Inquisição tem presas mais de 60 pessoas e outras tantas ou mais andam
fugidas para não serem presas.
Quintela de Lampaças, freguesia do termo de Bragança, era
outra terra onde a população marrana se apresentava excepcionalmente numerosa e
liderante. E em Setembro de 1634 um grupo de 23 homens e mulheres resolveu
celebrar a festa do dia grande (Kipur), em conjunto e com menos recato, em casa
de um deles. Na sequência desta celebração e da correspondente campanha
persecutória da Inquisição que ordenou a prisão de 19 deles, a grande maioria
da população marrana, mais de 60 pessoas adultas, abandonou a terra. Estes
acontecimentos de Quintela de Lampaças são contados na primeira parte deste
livro.
Na segunda parte, vamos para Castela, ao encontro de uma
família de marranos fugidos de Trás-os-Montes, mais concretamente da vila de
Izeda, e que ali construíram um verdadeiro império económico, cotando-se entre
os maiores banqueiros de Espanha e da Europa. É um caso exemplar de gente
Trasmontana a quem, na sua terra, não são dadas (nem tão pouco permitidas)
condições de vida e, por isso, se vê obrigada a ir dar vida a chãos estranhos.
Em tempos de paz e de normalidade política entre Portugal e
Castela, a linha de fronteira em Trás-os-Montes mais parecia um traço de união do
que de separação entre os dois reinos. As feiras espanholas de Medina del Campo
e Benavente eram da maior importância para os comerciantes Trasmontanos. Tal
como as feiras de Torre de Moncorvo ou do Azinhoso se enchiam de mercadores
Castelhanos. E a união transfronteiriça não era visível apenas ao nível da
economia, do comércio e das feiras. Também a outros níveis, com destaque para a
instrução e cultura. Assim se explica que as universidades de Salamanca ou de
Alcalá fossem tanto ou mais procuradas pelos estudantes Trasmontanos que a de
Coimbra. Assim se compreende que homens de letras de Trás-os-Montes tenham
conseguido maior projecção e prestígio em Castela do que na sua própria terra,
como foi o caso do Moncorvense Francisco Botelho de Morais. Porém, tempos houve
em que a guerra e a discórdia política entre os dois reinos transformaram a
fronteira em muro difícil de transpor.
Difícil, mas não impossível, que sempre o contrabando existiu e sempre houve
gente a arriscar a própria vida dando o salto na fronteira. Sobre o assunto,
versa a terceira e a mais extensa parte deste livro. Aconteceu pelos anos de
1650, no período mais aceso da Guerra da Restauração. Em Portugal, a Inquisição
parecia aliada dos espanhóis contra o novo rei D. João IV, o primeiro da
dinastia de Bragança. E lançou uma perseguição extremamente feroz contra os
marranos de Trás-os-Montes cujos cabedais e apoio logístico bem útil seria ao
governo português, no esforço de guerra. Aliás, não era António Rodrigues
Mogadouro o grande financiador dos exércitos lusitanos em Trás-os-Montes? E não
era o seu cunhado, António Fernandes Vila Real, o ministro de D. João IV com maior
peso nas relações internacionais? Não foi por isso que a Inquisição o lançou
na fogueira do auto de fé com que celebrou o 12.º aniversário do golpe do 1.º
de Dezembro? Pois, foi nesses anos de 1650 e certamente por isso mesmo, que a Inquisição
lançou uma das maiores campanhas contra os marranos de Trás-os-Montes, muito
especialmente na região do Leste Trasmontano. Com a ameaça da Inquisição e a
fronteira fortemente vigiada, a população marrana sentia-se, certamente, mais
encurralada, com as rotas de fuga para Castela bem vigiadas pelos esbirros da
Inquisição, que os havia em toda a parte. E foi então, em resposta a esta
situação que se formou em Vimioso uma rede de passadores de marranos que acabou
por ser desmanteladapela Inquisição e que neste livro se apresenta. Outras terá havido, porventura, ao longo da linha de fronteira e cujos membros não foram descobertos, pelo que não será possível falar delas. E outras mais terão sido descobertas e desmanteladas pela Inquisição? A resposta está nos milhares de processos guardados no Instituto do Arquivo Nacional da Torre do Tombo que ainda não foram lidos e divulgados.
António Júlio Andrade
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