segunda-feira, 19 de maio de 2014

O MOINHO DA AVÓ MARIA FRANCISCA,pela moncorvense Maria Idalina Brito

Era um luar de Agosto límpido e luminoso no céu azul.
A lua corria velozmente como se tivesse entrado numa maratona de satélites, planetas e cometas.
Ainda agora, mesmo agora, corria do nosso lado esquerdo e parece estar já na nossa frente.
Uma ou outra nuvem branca, passava de vez em quando.
A montanha estava à nossa frente, alta, com o cume coberto de pinheiros bravos, negros e azuis, que iam rareando à medida que se descia até à Ribeira de St.ª Marinha.
Antes desta, havia prados e campos com plantações de videiras, oliveiras, árvores de fruto como figueiras, cerejeiras e pereiras. As hortas estavam separadas por muros de pedra, cobertos de silvados e arbustos secos, vendo-se lá dentro as sombras dos feijoeiros e batateiras.
Logo a seguir às hortas, havia um terreno arenoso, mais pedregoso que arenoso, e altos choupos, olmos e freixos, que mantinham numa moinice lenta e suave os seus ramos, que só uma pequena aragem demonstrava existir.
De dia, as suas folhas eram de vários tons de verde: claros, escuros, azulados, luminosos e brilhantes; algumas, começavam a amarelecer pelo calor do sol.
Havia choupos com mais de 20 metros de altura. Outros, tinham 5, 10, 15 metros, encontrando-se ao longo do riacho, murando as suas margens, como desejando que as águas não passassem para além deles.
Mas, à nossa frente, havia uma clareira que nos permitia ver a montanha, os pinheiros, as sebes, a pequena praia de seixos e a ribeira.
A água, escura, cinza escura, com reflexos de prata, corria suavemente até outras terras, outras gentes, a fim de se encontrar depois com o Rio Douro, mais a sul, já no Concelho de Freixo de Espada à Cinta.
As nuvens e a lua reflectiam-se nas águas da ribeira. Aquela, continuava a correr no sentido inverso às águas do riacho.
Sons, vários sons, imensos sons, chegavam até nós: as rãs e os sapos coaxavam estrondosamente, os grilos cantavam ao desafio e até o mocho se mantinha no mesmo local como que a ver-nos, a saudar-nos, a cantar-nos as suas melodias tristes. Parece que gostavam da nossa companhia. Não nos largavam, mas não deixavam as suas vidas para nos verem e ouvirem.
Nós, do outro lado, mais de uma dúzia, ouvíamos histórias fantásticas de lobisomens, velhas a viver na lua com feixes de lenha às costas, rapazes e homens atacados por lobos, histórias de bruxas, histórias de homens e mulheres daquela aldeia onde nasci, situada na região Alto Duriense, ou Terra Quente Transmontana.
 Só nós éramos cinco: meu pai, João Carlos, minha mãe, Ana, meu irmão Luís,  minha irmã Inês Filomena, ainda bebé. e eu.
Da casa da minha tia Amélia era ela, meu tio Camilo e dois filhos: o Zé Alberto e a M.ª de Fátima.
Havia depois o moleiro, a mulher dele e três filhos.
Parece-me também que, numa noite, se juntou a nós a minha avó Maria Francisca, proprietária do moinho, e a minha tia Luísa, com o marido, do mesmo nome, mas sem a, Luís.
 Ainda me lembro hoje, dessas noites já distantes, dos primeiros anos da minha infância.
Como eu gostava daqueles serões de Verão, junto à ribeira! Como gostava daquelas histórias extraordinárias, misturadas com latidos de cães e lobos a uivar! Nunca cheguei a ver nenhum lobo com os seus olhos a luzir na escuridão. Mas meu tio Camilo dizia que sim.
– Olhem um lá em cima... ‒ e apontava para uma sebe ou para a sombra de um pinheiro.
– Aonde? Perguntávamos nós, com o coração aos pulos e as pernas a tremer cheios de medo, enroscando-nos mais ao peito da nossa mãe.
Meu pai ouvia pensativo e, com uma voz melancólica, triste e dolorosa, conseguiu desabafar o que lhe apertava o peito há já algum tempo:
– Lobos vi eu, um dia. Lobos famintos. Quatro lobos enormes que me seguiram durante meia hora. Ainda hoje, ao falar nisso, um grande medo me assola. Todo eu tremia! A mula também!
– Quando foi isso, pai?
– Há já alguns meses atrás. No Inverno passado...
– Nunca me falaste nisso, João Carlos, dizia minha mãe.
­ Pois não... Não queria que ficasses preocupada... mas, só à simples lembrança deles, todo eu estremeço...
– Então, como é que foi isso?
– Foi ao entardecer... Não seriam ainda as 5 horas da tarde. Escureceu depressa nesse dia... Caramba! Um escuro como breu invadiu a serra e a estrada.
– Que serra, João? perguntou meu tio Camilo.
– A Serra de Bornes.
– Ui! Essa serra é terrível! Já lá passei das boas!
– Pois é, e, eu que o diga!
– Mas conta lá!
– Nessa tarde estive em Alfândega, onde fiz algum negócio. Passei em Sambade onde entrei na tasca do Ti Zé Boto para comer qualquer coisa, e, apressei-me, porque tinha de ir dormir a Vale Benfeito, em casa do amigo Mário Reis.
– Ó! O Mário Reis! Há que séculos não o vejo! Como tem andado? Tem-lo visto? continuava a perguntar o tio Camilo.
– Nem por isso! A última vez que o vi, foi há 2 ou 3 meses. Estava um pouco adoentado. Uma gripe pô-lo de rastos! Até esteve na cama durante alguns dias!...
– Mas conte pai, conte a história dos lobos!
– Qual história? Conte a verdade, é o que é!
– Pronto, está bem! Mas conte!
– Como ia dizendo... dirigia-me para Vale Benfeito onde tinha umas encomendas de velas e mel para a tia Francisca do Eiró e para o Sr. Antoninho da Fonte... Descia já a Serra de Bornes... um escuro como breu! Nem vivalma! Nem um som!... Nisto, a mula relincha, estremece... e eu, aflito, olho... e o que vejo?... Duas lobas enormes!! Uma de cada lado da estrada, a olharem-me assustadoramente... todo eu tremi, mas fiz-me forte! Começo a falar alto, a incentivar a mula a continuar o caminho, pois ia montado na garupa e podia encaminhá-la com os pés... Bem via que ao animal não apetecia nada andar, mas precisava de chegar a Vale Benfeito antes que o Ti Mário fosse prá cama...
– E depois?
– Depois, continuei a descer a estrada a cantar, para espantar o medo e fazer-me forte... e, numa curva, o que vejo por detrás de uma giesta? Mais quatro olhos a brilhar na escuridão... pude notar, que um lobo era macho e, outro, uma fêmea.
– Não teve medo, ti João? perguntou  o José Alberto.
– Se tive!... O meu coração batia tanto, que até se poderia ouvir ao longe! Olho para o lado direito e vejo as duas lobas que continuavam a seguir-nos e, olho para o lado esquerdo e vejo o lobo e a loba que apareceram depois.
– Quatro lobos! Matavam-no pai! E até comiam a mula! interveio meu irmão Luís, preocupado e sempre amigo e companheiro de meu pai.
– Isso, era o que eles pensavam! Nunca tive tanto medo na minha vida! Pedi a Deus que me ajudasse! Rezei alto um Pai Nosso e uma Avé Maria! Fiz uma promessa a Santa Eufêmia!
– E não o atacaram, tio? perguntava a Fátima.
– Mortinhos por isso estavam eles e desejosos de se atirarem à mula mansa! Bem se notava que estavam esfomeados. O que faço? pensei... pensei... vou acender um fósforo, pode ser que tenham medo ao fogo! Puxei da caixa de fósforos do bolso das calças e, acendi um... Nada! Continuavam a seguir-nos. Lembrei-me de acender uma vela para me iluminar caminho abaixo. Como trazia os alforges carregados delas, baixo-me um pouco e, sempre em cima da mula a olhar para ambos os lados da estrada, acendi a vela, que coloquei na mão esquerda, já que na direita, trazia a rédea do animal... E nada... nem a vela acesa lhes metia medo... Umas vezes, passavam-me à frente, outras vezes, ficavam para trás. Quando não os via, pensava: já se teriam ido embora? Era tão bom! Mas nada! Passados uns minutos já os voltava a ver à minha frente... A vela, com o vento e frio que estava, apagou-se umas três ou quatro vezes, até que desisti de a voltar a acender.
– Que medo, João Carlos! Eu morria de susto! dizia minha mãe.
– Eu até me admiro como não morri também!
­ Mas continua, continua, João, falava entusiasmada a tia Amélia.
– Bem, chego em baixo ao cruzamento que liga Bragança e Macedo de Cavaleiros a Moncorvo, Mirandela e Alfândega da Fé... Senti-me um pouco mais aliviado, porque a aldeia de Bornes já ficava perto. Pensei: agora nesta estrada não me seguis, ides embora de certeza... Mas qual quê? Continuaram a perseguir-me e cada vez se abeiravam mais da estrada. Deviam estar a combinar qual dos quatro seria o primeiro a atacar.
– Era uma alcateia, pai, porque um conjunto de lobos chama-se alcateia! dizia eu admirada por estarem tantos lobos juntos e meu pai ter a sorte de os ver!
– Muito bem! Era uma família: três lobas e um lobo, só faltavam os filhos, que deviam estar no ninho ou toca...
– Continua, continua... ‒ dizia minha tia Luísa, desejosa de saber o desfecho desta história.
– Nisto, o meu pensamento iluminou-se! Como já estou próximo da aldeia, porque não chamo pelos cães? E, aos berros, de pé, em cima da mula, sem nenhum medo em cair dela, e, com toda a força que se apoderou de mim, chamo: bicho, boca, boca! é cão! é cão! boca, boca, é lobo, é lobo! é cão! é cão! é cão!... De repente... ouço o ladrar de um cão, depois outro e mais outro... aproximam-se de mim... e eu continuo a chamá-los: é cão, é cão, é cão!... estão cada vez mais perto... é cão, é cão, é cão... Os lobos, esses, passado algum tempo, só  vejo dois saltar a estrada e correrem Serra acima a uivar!
Os outros dois, tinham desaparecido também entre o matagal... Que alívio! Como agradeci a Deus estar vivo!
– Que sorte, tio! Eles deviam ter ficado muito zangados...!
 Zangados ou não, que me importa! O importante era estar salvo! Como agradeci a Deus e a Santa Eufêmia!
– Que sorte, pai! Ainda bem que não lhe aconteceu nada, dizia meu irmão.
– É verdade, filho! O meu Anjo da Guarda não me deixou e, Deus, bem sabia que tinha em casa uma mulher e três filhos pequeninos para criar.
– Que perigos nós corremos todos os dias, quando andamos por lá! São os lobos! Os salteadores! É o frio! É o calor! É estar longe de casa! Eu sei lá! São tantos os dissabores! Os trabalhos e canseiras!
– É verdade, Camilo! Escolhemos uma vida atribulada! E as pneumonias? Só eu, com esta idade, já curei duas!
– Sim, é verdade! Mas a vossa família, do lado da tua mãe de Maçores, sempre foi muito frágil dos pulmões. Olha a Amélia, também sofre de bronquite bem como a Filomena que está no Brasil...
– E asma! Minha mãe sofre muito de asma e de bronquite! A minha irmã Filomena, antes de ir para o Brasil, era uma mártir! Por vezes, tinha que ir para a porta de casa apanhar o ar da rua, pois não conseguia respirar dentro dela! Mas agora, no Brasil, até tem passado muito bem!
– Quando é que nos virão visitar? perguntou sorumbaticamente saudosa minha tia Luisa.
– Talvez, nunca, respondeu o marido.
– Não. Eu acredito que um dia ainda virão, dizia a tia Amélia.
– E eu também, dizia minha mãe!


  Maria Idalina Brito
Fonte:"A Terra de Duas Línguas II. Edição: Lema D'Origem
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1 comentário:

  1. Parabéns à autora, Maria Idalina. Descreveu a cena com muito realismo.

    Júlia Ribeiro

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