terça-feira, 20 de maio de 2014

Ácido Lisérgico,por Tiago Patrício

Casa da Roda de Moncorvo.
Lembro-me como das histórias do avô Augusto e nunca tivesse acontecido, por já não haver quem se queira lembrar.
Morreram todos no espaço de 3 meses, o meu pai de gangrena nos braços e nas pernas, os meus irmãos caçados no monte pelo povo como demónios e a minha mãe e as minhas irmãs mais velhas queimadas na fogueira na vila, num Auto de Fé. Eu tinha 6 anos e só me levaram para a Casa da Roda porque ainda não tinha idade para ser presa a uma estaca em cima de um monte de estevas em labareda.
Foi num ano muito frio e com muita chuva, fora de tempo. Em Maio antes das segadas, um trovão caiu em cima do campo de centeio e chegou fogo à nossa seara. Eu ia com a minha mãe no burrico a fugir da trovoada e da terra que parecia ter pegado fogo atrás de nós. Nunca mais me esqueci da cara assustada dela em cima do burro e de mãos postas a rezar a oração dos trovões a Santa Bárbara.
Nesse ano quase não colhemos centeio, só nhamos uns sacos do ano anterior, guardados na adega, estavam cheias de humidade e algumas com bolor, estiveram a secar na eira e depois fizemos o pão com ele mesmo estragado, porque sabíamos que o fogo desinfectava. Mas não foi o suficiente e em pouco tempo o Diabo entrou na nossa casa e na de outros que tinha comido pão feito com centeio do ano anterior, só na Rua do Quebra Costas foram três, as famílias levadas pelos oficiais do Santo Ofício e muitas outras espalhadas pela aldeia foram levadas nesse ano.
em casa a primeira a dar sinais foi a minha irmã Ricardina que dormia comigo, andava a aprender costura e até já tinha pretendente, começou por não dormir de noite, a queixar-se do calor e a enrodilhar-se no chão de pedra de camisa de noite. Sentia o corpo a arder e a cabeça a estourar de tal maneira que uma noite o meu pai a apanhou na cortelha do porco enrolada no esterco e com a cara desfigurada pelas unhas.

se falava na aldeia que andava um espírito a acesentar as raparigas novas e que só o Padre o podia tirar, mas de todas as que foram pedir a salvação, nenhuma saiu de  lá viva, muito menos curada. Por isso meu pai e meus irmãos decidiram fechá-la na adega dia e noite, prenderam-na a uma cama de ferro com uma corda grossa, davam-lhe de comer duas vezes ao dia, mudavam-lhe a roupa e limpavam-lhe o chão quando podiam.
Passaram-se três ou quatro dias naquilo, mas a coisa piorava e ela começou a dar gritos cada  vez  mais  aflitos,  como  um  animal  enjaulado.  Tinha  deixado  de  falar  e  só  dava guinchos e atirava-se a nós quando lhe abríamos a porta e tentava arranhar-nos e morder- nos. Atirava-nos com a trampa do bacio para a cara e ao fim de um tempo já quase toda a gente sabia na nossa rua e os vizinhos começaram a fartar-se de ouvir os berros dela noite e dia.
Os meus irmãos eram uns belos rapazes, bem educados e estimados pelos patrões, mas um dia  numa  festa  do  S.  João  emborracharam-se  ou  emborracharam-nos  para  os  picar  e armaram barulho quando um começou a dizer que tinham uma porca berruíça na adega que precisava de ser coberta. Eles estavam tocados a vinho e caíram na cilada para andarem ao barulho com os outros rapazes, levaram porrada e foram corridos da aldeia à pedrada.
No dia seguinte à tarde apareceram uns homens  numa carroça escura,  vestidos de cinzento e com uma corda à cintura para levarem a minha irmã Ricardina ao padre para se confessar.
Já se contavam muitas mulheres fechadas na igreja, à espera do dia certo para serem vistas pelo Bispo de Miranda, que andava a fazer a ronda pelas vilas e aldeias nesse Outono. Meu pai pouco podia fazer para impedir os homens de a levarem, já se tinha achado doente e estava de cama com febres e dores no corpo e umas chagas que lhe apareciam nos dedos dos pés, nos tornozelos, nos pulsos e nas mãos. Os meus irmãos estavam num amendoal a apanhar a amêndoa e quando chegaram já não puderam fazer nada senão pensarem em esconder-se ou fugir antes que fosse tarde para eles tamm. Juntou-se muito povo à porta da  nossa  casa  para  verem  a  garota  sair  toda  rota  e  desfigurada,  com  aquela  cara  de feiticeira. Mal a viam benziam-se e excomungavam-na, diziam que era bruxa e que se via logo pelas feições e pelos modos.
Diziam que já muito desconfiavam de bruxarias, mas não esperavam que uma mãe como a nossa consentisse em tal coisa sem pedir ajuda. Minha mãe consumida, com os olhos vermelhos de chorar a desgraça da filha e a traição dos vizinhos de toda a vida, recolheu-se em casa e deixou-a ir, antes que a acusassem de ser a bruxa principal. Mas não tardou muito que a culpa de ter vendido a filha a Satanás se alastrasse aos dois filhos que já andavam tomados por uma fúria destemperada, depois de alguns jurarem tê-los visto a aluar à noite para os lados do cemitério.
 Ninguém estava livre e dali a uns dias, uma mulher de 23 anos solteira que vivia com o pai foi  levada  por  suspeita  de  dormir  com  ele.  Desde  o  começo  da  desgraça  que  muitas mulheres tinham sido acusadas e meia dúzia de homens e velhos tinham morrido de repente em menos de uma semana, numa sangria desgraçada e até ao dia dos Santos Finados, foi uma limpeza pelas casas dos pobres e remediados.
Os meus irmãos andaram escondidos durante 2 semanas na quinta do Cabeço, a viverem de umas batatas e dos ovos de duas pitas que levaram num alforge, mais umas perdizes e lebres que apanhavam no laço, mas foram denunciados por um pastor que viu fumo ao entardecer nos palheiros, dizia-se que matavam ovelhas como dois lobos e até já tinham apanhado crianças. No outro dia de manhã tinham meia aldeia a cercá-los com sachos e calagouças para lhes tirarem a pele e pela tarde trouxeram-nos abertos como porcos atados a um toro e deixaram-nos à nossa porta para que os víssemos. A minha mãe nem se atreveu a sair à rua para os amortalhar, passaram o resto da tarde a juntar lenha e a atirar-nos pedras às portas e à janela da cozinha. À noite deitaram-lhes fogo enquanto batiam palmas de satisfação. Com o crescer das chamas e da fúria, entraram-nos em casa e levaram-nos, foi a última vez que vi a minha mãe, desfeita e meia desnorteada como a minha irmã Ricardina, pelos alcalóides da cravagem do centeio que passaram para o pão que comemos.
Deixaram-me entregue a umas mulheres com vestidos até aos pés, levaram-me para uma casa grande e escura de onde não voltei a sair, o resto da história contaram-ma e está nos livros para quem a quiser ler.
No dia que o Bispo de Miranda chegou, numa carruagem de veludo vermelho, toda a gente esperava ajoelhada pela sua benção. Era um homem enfezado de manto vermelho e com um olhar assustado que andava de aldeia em aldeia a coleccionar as cinzas e os gritos das almas possuídas.
Juntaram mais de 30 mulheres novas, que depois de amontoadas durante semanas, com pouca comida e sem mudas de roupa, tinham atingido a imagem de bruxa escanzelada e de cara infundida que toda a gente procurava demonstrar. Prenderam-nas a uns postes na praça da Igreja e depois de umas rezas e umas palavras cheias de fervor e redenção começaram a chegar-lhe fogo. Quando o cheiro do fumo negro e da carne queimada começou a chegar aos olhos ardentes e aos narizes frios, começou a descer aos corações daqueles que as conheciam desde sempre. Aos poucos começaram a cair neles e nos rostos que latejavacom o calor das labaredas, começaram a reconhecer as moças que tinham visto nascer, que eram a alegria da aldeia e sem saberem como, da mesma maneira que tinha juntado a lenha para as  imolar, começaram a espalhar as brasas e a desamarrar as que puderam. Houve uns quantos rapazes, que não podendo fazer nada se deixaram arder arrependidos, mas ainda se salvaram umas sete ou oito no meio daquela mortandade e desperdício de vida.
Tiago Patrício.
Nota do editor: 
A Câmara Municipal de Torre de Moncorvo promove no dia 30 de Maio, pelas 21h00, a apresentação do livro “Mil Novecentos e Setenta Cinco” do autor Tiago Patrício, na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo.Dia 31,pelas 17,00 horas ,apresentação em Miranda do Douro.

7 comentários:

  1. A Câmara Municipal de Torre de Moncorvo promove no dia 30 de Maio, pelas 21h00, a apresentação do livro “Mil Novecentos e Setenta Cinco” do autor Tiago Patrício, na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo.
    O livro fala de uma viagem improvável a uma aldeia imaginária do nordeste transmontano no ano de viragem de 1975, representada num romance por várias personagens que tentam recuperar formas de vida que estão a desaparecer, em contraste com um novo mundo que se impõe. É um romance onde cabe tudo: amores tardios, mortes adiadas, fugas e regressos triunfais, infidelidades descobertas dentro de armários, alfaiates e coveiros desempregados, mulheres que lavam no ribeiro e rapazes que as espreitam, ferroviários, comerciantes e todos os deserdados e perseguidos que tentam subir as escadas dos antigos e dos novos proprietários. Nesta viagem pelas longas paisagens transmontanas, entrecortadas por desvios súbitos e perigosos, tal como as antigas linhas de via estreita da região, o leitor é conduzido pela mão de personagens que insultam e provocam gargalhadas na mesma frase, com um humor contagiante, que varia entre a temperança e a exaltação.
    O AUTOR - TIAGO PATRÍCIO

    Nasceu no Funchal em 1979 e foi viver para Carviçais com apenas 9 meses. Estudou na telescola, andou em carroças, conduziu carros sem carta, fez corridas de motorizada sem capacete e aos 19 anos ingressou na Escola Naval. Regressou à vida civil para estudar na Faculdade de Farmácia e em 2007 começou a trabalhar como farmacêutico. No mesmo ano venceu o prémio Jovens Escritores e foi selecionado pelo Clube Português de Artes e Ideias para uma residência em Praga. Escreveu a peça Checoslováquia e o livro Cartas de Praga, apresentado em Skopje em 2009.
    Depois disso nunca mais conseguiu largar os livros nem o teatro.
    Venceu os prémios Daniel Faria e Natércia Freire em poesia e o Prémio Agustina Bessa-Luís em 2011 com o seu romance Trás-os-Montes.
    Participou em algumas residências literárias: Turquia, Tunísia, EUA, Repúblicas Bálticas e alguns dos seus textos foram publicados no Egipto, Eslovénia, Espanha e República Checa.
    Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
    Luciana Raimundo

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  2. Parabéns ao Tiago Patrício pelo seu novo livro, o qual, espero seja pelo menos, um êxito semelhante a "Trás-os-Montes".

    Armando Sena

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  3. Videira Félix :
    Excelente documento. Obrigado.

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  4. Humberto Ferreira:
    Por estas e por outras é que deixei de acreditar na religião.

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  5. Maria Fátima Baptista Campeão:
    Esplêndida Narrativa! Parabéns a Tiago Patrício e Grata pela Partilha de Lelo Demoncorvo. Bem-Hajam.

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  6. Um texto cuja leitura nos tira o fôlego.
    Parabéns ao Tiago Patrício.

    Abraço
    Júlia Ribeiro

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