Casa da Roda de Moncorvo. |
Lembro-me como das histórias do avô Augusto e nunca tivesse acontecido, por já não haver quem se queira lembrar.
Morreram todos no espaço de 3 meses, o meu pai de gangrena nos braços e
nas pernas, os meus irmãos caçados no monte pelo povo como demónios e a
minha mãe e as minhas irmãs mais velhas queimadas na fogueira na vila, num Auto de Fé. Eu tinha 6 anos e só me levaram para a Casa da
Roda porque ainda não tinha idade para ser presa a uma estaca em
cima de um monte de
estevas em labareda.
Foi num
ano muito frio e com
muita chuva, fora de tempo. Em Maio
antes das segadas, um trovão caiu em
cima do campo de centeio e chegou
fogo à nossa seara. Eu ia com
a minha mãe no burrico a fugir da trovoada e da
terra que parecia ter pegado fogo atrás de nós. Nunca mais me esqueci
da cara assustada dela em cima do
burro e de mãos postas a rezar
a oração dos trovões a Santa Bárbara.
Nesse ano quase não colhemos centeio, só tínhamos uns sacos do ano anterior, guardados na adega, estavam cheias de humidade
e algumas com bolor, estiveram a secar na eira e depois fizemos o
pão com ele mesmo estragado,
porque sabíamos que o fogo desinfectava. Mas não foi o
suficiente e em pouco tempo o Diabo entrou na
nossa casa e na de outros
que tinha comido pão feito com centeio do ano anterior, só
na Rua do Quebra Costas
foram três, as famílias levadas pelos oficiais do Santo Ofício e muitas outras espalhadas pela aldeia
foram levadas nesse ano.
Cá em casa a primeira a dar sinais foi a minha irmã Ricardina que dormia comigo, andava a aprender costura e até já tinha pretendente, começou por não dormir de noite, a queixar-se do calor e a enrodilhar-se
no chão de pedra só de camisa de noite. Sentia o
corpo a arder e a cabeça a estourar de tal maneira que
uma
noite o meu pai a
apanhou na cortelha do porco enrolada no esterco e
com a cara desfigurada pelas
unhas.
Já se falava na aldeia que andava um espírito a acesentar as raparigas novas e que só o
Padre o podia tirar, mas de todas as que foram pedir a salvação, nenhuma saiu de lá viva,
muito menos curada. Por isso meu pai e meus irmãos decidiram fechá-la na
adega dia e noite, prenderam-na a
uma
cama de ferro com uma corda grossa, davam-lhe de comer duas vezes ao dia, mudavam-lhe a roupa
e limpavam-lhe o chão quando podiam.
Passaram-se três ou quatro dias naquilo, mas a coisa piorava
e ela começou a dar gritos cada vez mais aflitos, como
um animal
enjaulado.
Tinha deixado
de falar
e só
dava guinchos e atirava-se a nós
quando lhe abríamos a porta e tentava arranhar-nos e
morder- nos. Atirava-nos com a trampa do bacio para a
cara e ao fim de um tempo já quase toda a gente sabia na nossa rua e os vizinhos começaram a fartar-se de
ouvir os berros dela noite e dia.
Os meus irmãos eram
uns belos rapazes, bem educados e estimados pelos patrões, mas um dia
numa festa
do
S. João emborracharam-se
ou
emborracharam-nos
para
os picar
e
armaram barulho quando um começou a dizer que
tinham uma porca berruíça na adega que
precisava de ser coberta. Eles estavam
tocados a vinho e caíram na
cilada para andarem ao barulho com os outros
rapazes, levaram porrada e foram
corridos da aldeia à pedrada.
No dia seguinte à tarde apareceram cá uns homens
numa carroça escura, vestidos de cinzento e
com uma corda à cintura para
levarem a minha irmã Ricardina ao padre para se confessar.
Já se contavam muitas mulheres fechadas na igreja, à espera do
dia certo para serem
vistas
pelo Bispo de Miranda,
que andava a fazer a ronda pelas vilas e aldeias nesse Outono. Meu pai pouco podia fazer para impedir os homens de a levarem, já
se tinha achado doente e estava de cama com febres e dores no corpo e umas chagas que lhe apareciam nos dedos dos
pés, nos tornozelos, nos pulsos e nas mãos. Os meus irmãos estavam num amendoal a apanhar
a amêndoa e quando
chegaram já não puderam fazer nada senão pensarem em esconder-se ou fugir antes que fosse tarde para eles também. Juntou-se
muito povo à
porta da nossa casa para verem a
garota sair toda
rota
e desfigurada, com aquela
cara
de
feiticeira. Mal a viam benziam-se e excomungavam-na, diziam que era bruxa e que se
via logo pelas feições e pelos
modos.
Diziam que já há muito desconfiavam de bruxarias, mas não esperavam que
uma
mãe como a nossa
consentisse em tal coisa sem pedir ajuda. Minha
mãe
consumida, com os olhos vermelhos de
chorar a desgraça da filha e a traição dos vizinhos de toda a vida, recolheu-se
em casa e deixou-a
ir, antes que a acusassem de ser a bruxa
principal. Mas não tardou
muito que a culpa de ter vendido a filha a Satanás se alastrasse aos dois filhos que já
andavam tomados por
uma
fúria destemperada, depois de alguns
jurarem tê-los visto a
aluar à noite para os lados
do cemitério.
Ninguém estava livre e dali a uns dias, uma mulher de 23 anos solteira que vivia com
o pai foi levada por
suspeita de dormir
com
ele. Desde
o começo
da
desgraça
que
muitas
mulheres tinham
sido acusadas e meia dúzia de homens e velhos tinham morrido de repente
em menos de uma semana, numa sangria desgraçada
e até ao dia dos Santos Finados,
foi uma limpeza pelas
casas dos pobres e remediados.
Os meus irmãos andaram escondidos durante 2
semanas na quinta do
Cabeço, a viverem de umas batatas e dos ovos de duas pitas que levaram num alforge, mais umas perdizes e
lebres que apanhavam no
laço, mas foram denunciados por um pastor que viu
fumo ao entardecer nos palheiros, dizia-se
que matavam ovelhas como dois lobos e até já tinham
apanhado crianças. No outro dia de manhã tinham meia aldeia a cercá-los com sachos e
calagouças para lhes tirarem
a pele e pela tarde trouxeram-nos abertos como porcos atados
a um
toro e deixaram-nos à nossa porta para que os víssemos. A minha mãe nem se atreveu
a sair à
rua para os amortalhar, passaram
o resto da tarde a
juntar lenha e a atirar-nos pedras às
portas e à janela da cozinha. À noite deitaram-lhes fogo
enquanto batiam palmas de satisfação. Com o
crescer das chamas e da
fúria, entraram-nos em casa e levaram-nos, foi a
última vez
que vi a minha mãe, desfeita e
meia desnorteada como a minha irmã Ricardina,
pelos alcalóides da cravagem do centeio que
passaram para o pão que comemos.
Deixaram-me entregue a umas mulheres com vestidos até aos
pés, levaram-me para uma casa grande e escura de onde
não voltei a sair, o resto da
história contaram-ma e está nos
livros para quem a quiser ler.
No dia que
o Bispo de Miranda chegou, numa carruagem de veludo vermelho, toda a
gente esperava ajoelhada pela sua benção.
Era um homem enfezado de manto vermelho e com
um olhar assustado que
andava de aldeia em aldeia a
coleccionar as cinzas e os gritos das almas possuídas.
Juntaram mais de
30 mulheres novas, que
depois de amontoadas durante semanas, com
pouca comida e sem mudas de
roupa, tinham atingido a imagem de bruxa
escanzelada e de cara infundida que toda a gente procurava
demonstrar. Prenderam-nas a
uns postes na praça da Igreja
e depois de umas rezas e umas palavras cheias de fervor e redenção começaram a chegar-lhe fogo. Quando o cheiro do fumo negro e da carne queimada começou a chegar aos olhos ardentes e aos narizes frios, começou a
descer aos corações daqueles que
as conheciam desde sempre. Aos poucos começaram a cair neles e nos rostos que latejavam com o calor das labaredas, começaram a
reconhecer as moças que tinham visto nascer,
que eram a alegria da aldeia e sem saberem como, da mesma maneira que tinha juntado a
lenha para as imolar, começaram a espalhar as brasas e a desamarrar as que puderam. Houve
uns quantos rapazes, que não podendo
fazer nada se deixaram arder arrependidos, mas ainda se
salvaram umas sete ou oito no meio daquela mortandade e
desperdício de vida.
Tiago Patrício.
Nota do editor:
A Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
promove no dia 30 de Maio, pelas 21h00, a apresentação do livro “Mil Novecentos
e Setenta Cinco” do autor Tiago Patrício, na Biblioteca Municipal de Torre de
Moncorvo.Dia 31,pelas 17,00 horas ,apresentação em Miranda do Douro.
A Câmara Municipal de Torre de Moncorvo promove no dia 30 de Maio, pelas 21h00, a apresentação do livro “Mil Novecentos e Setenta Cinco” do autor Tiago Patrício, na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo.
ResponderEliminarO livro fala de uma viagem improvável a uma aldeia imaginária do nordeste transmontano no ano de viragem de 1975, representada num romance por várias personagens que tentam recuperar formas de vida que estão a desaparecer, em contraste com um novo mundo que se impõe. É um romance onde cabe tudo: amores tardios, mortes adiadas, fugas e regressos triunfais, infidelidades descobertas dentro de armários, alfaiates e coveiros desempregados, mulheres que lavam no ribeiro e rapazes que as espreitam, ferroviários, comerciantes e todos os deserdados e perseguidos que tentam subir as escadas dos antigos e dos novos proprietários. Nesta viagem pelas longas paisagens transmontanas, entrecortadas por desvios súbitos e perigosos, tal como as antigas linhas de via estreita da região, o leitor é conduzido pela mão de personagens que insultam e provocam gargalhadas na mesma frase, com um humor contagiante, que varia entre a temperança e a exaltação.
O AUTOR - TIAGO PATRÍCIO
Nasceu no Funchal em 1979 e foi viver para Carviçais com apenas 9 meses. Estudou na telescola, andou em carroças, conduziu carros sem carta, fez corridas de motorizada sem capacete e aos 19 anos ingressou na Escola Naval. Regressou à vida civil para estudar na Faculdade de Farmácia e em 2007 começou a trabalhar como farmacêutico. No mesmo ano venceu o prémio Jovens Escritores e foi selecionado pelo Clube Português de Artes e Ideias para uma residência em Praga. Escreveu a peça Checoslováquia e o livro Cartas de Praga, apresentado em Skopje em 2009.
Depois disso nunca mais conseguiu largar os livros nem o teatro.
Venceu os prémios Daniel Faria e Natércia Freire em poesia e o Prémio Agustina Bessa-Luís em 2011 com o seu romance Trás-os-Montes.
Participou em algumas residências literárias: Turquia, Tunísia, EUA, Repúblicas Bálticas e alguns dos seus textos foram publicados no Egipto, Eslovénia, Espanha e República Checa.
Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
Luciana Raimundo
Parabéns ao Tiago Patrício pelo seu novo livro, o qual, espero seja pelo menos, um êxito semelhante a "Trás-os-Montes".
ResponderEliminarArmando Sena
Videira Félix :
ResponderEliminarExcelente documento. Obrigado.
Humberto Ferreira:
ResponderEliminarPor estas e por outras é que deixei de acreditar na religião.
Maria Fátima Baptista Campeão:
ResponderEliminarEsplêndida Narrativa! Parabéns a Tiago Patrício e Grata pela Partilha de Lelo Demoncorvo. Bem-Hajam.
Um texto cuja leitura nos tira o fôlego.
ResponderEliminarParabéns ao Tiago Patrício.
Abraço
Júlia Ribeiro
Obrigado e abraços.
ResponderEliminarTiago