A queijeira da Póvoa a caminho do estábulo |
Tinham-me dito que o queijo de ovelha só na Póvoa e em casa de uma tal Sr.ª Carminda, famosa por não dar leite ao «carro» (que é uma história que conto mais à frente). A Sr.ª Carminda tirava estrume com o marido e a filha solteira; sabendo ao que vinha levou-me pronto até à queijaria. Foi assim que entrei na Póvoa, talvez a aldeia mais pobre de toda a fragada da Cardanha.
Na Póvoa há gente, ovelhas, algum macho ou burro por ali – e criação à solta. Cães, claro. Muita modéstia à vista.
A Sr.ª Carminda estava com três ou quatro queijos em processo de fabrico, a escoarem para as francelas, calcados por pedras grossas. O meu companheiro de viagem queria dois.
«São a 70 o quilo» - avisou a queijaria, não fosse termos vindo à Póvoa desprevenidos.
A pesagem fez-se num instante. Uma pedra era um quilo, um bico de charrua meio quilo, uma chave um quarto de quilo.«Aquela pedra maior é a arroba» - apontou a Sr.ª Carminda.
Pesou a compra 1,70 kg de massa compacta, saborosíssima, como descobrimos mais tarde na vila.
E então surgiu a história. Aqui há tempos a Sr.ª Carminda,
queijeira com excedentes de leite, vendia parte deste aos homens do «carro»,
comerciantes de Moncorvo. Justaram o litro a 9$00.Quando foi do pagamento, os
compradores disseram-lhe que afinal não podiam dar os 9$00, mas 7$00, porque as
análises tinham revelado um «defeito».
«Qual defeito?»
«Parece que gordura a menos. O leite não tinha a gordura lá
deles e eu não tenho culpa» - respondeu-me a Sr.ª Carminda.
O que é, o caso não morreria ali. Foi a Sr.ª Carminda para a
Justiça.
«Fui para a Justiça, eles escreveram a dizer que não podiam
dar os 9$00, que dava muito prejuízo. Falei com um senhor advogado. Um dia o
senhor advogado disse: receba lá a 7$00, senão não recebe nada.»
A Sr.ª Carminda recebeu a 7$00, mas jurou que, enquanto
fosse viva, nem mais uma gota iria para os homens do «carro». Esta história,
narrada no «soto» dos Estevais, envolvia-se de ressonâncias épicas.
«Não valemos já nada»
Remediada, a Sr.ª Carminda sobressaía do comum das gentes do
lugar. Seria a pessoa mais importante? Não era.
«Essa é a Sr.ª Maria Sendas. A Sr.ª Carminda talvez seja a
segunda» - propôs alguém nos Estevais.
Entretanto, via-se que na casa da Sr.ª Carminda havia um
mínimo de comodidades (ao nível aldeão, bem entendido). Junto ao lume, uma
estantezinha, reparei numa lata de «Toddy», um frasco de café «Mokambo», um
pacote de «Bravo».
«São coisas que vêm do supra» - explicou o marido no dia
seguinte à cena dos queijos. (No supra de Moncorvo, quer dizer, no supermercado
da vila, trabalha um filho do casal. Outro filho está igualmente em Moncorvo).
Ocupações da queijeira, marido e filha? O queijo,
evidentemente, e os amanhos da pequena lavoura.
«Ofereci 100$00 por dia a dois homens para me tirarem o
estrume e não quiseram: não precisavam» - queixa-se-me o marido.
Por isso o víramos, a ele, à mulher e à filha, com as botas
pegajosas e as mãos pretas de pegar no forcado.
«Isto aqui são quantos homens?»
O marido da Sr.ª Carminda fez as contas:
«São onze. Somos onze ao todo. Já não valemos nada.»
Da Póvoa pode-se ir viver para a vila, da vila ninguém
regressa à fragada. Os filhos do casal constituíram as suas famílias,
desapareceram, vivem a 10 quilómetros, pouco mais longe.
A filha solteira encontrará um dia homem para casar, quem
sabe por procuração (um emigrante). Tem 16 anos, pensa fazer o ciclo. Agora
ajuda os pais; veste um camisolão preto e umas calças também pretas, seguras
por um cinto «pop»; fala só meias palavras.
Na Póvoa andei dois dias. No primeiro compraram-se os queijos,
no segundo comeu-se um jantar à Sr.ª Carminda e ao marido, por convite
insistente.
No segundo dia éramos para dar transporte à Sr.ª Carminda da
vila para a Póvoa: a queijeira tinha que deslocar-se a Moncorvo por causa das
vacinas. Combinados hora e local de embarque, ela não apareceu. Mas o convite
para o jantar ficara de pé, de modo que voltámos à aldeia da fragada.
Esperavam-nos lá em casa, acompanhados da professora da escola.
O jantar foi opíparo: alheiras, chouriço, batata frita e
grelos. Sem vinho, pois o marido da Sr.ª Carminda não bebe. Acabada a refeição,
pusemo-nos ao lume na conversa. O regresso foi às oito e meia da noite. Já toda
a gente da casa cabeceava com sono.
Um regresso difícil. Íamos descansados da vida, pela «rua»
principal, direitos ao automóvel, e ladrou um cão de pastor.
«Alto» - gritou o meu companheiro de viagem. – «Este morde!»
Realmente o cão e pior, não arredava da «rua». Chamámos por
gente vizinha. Veio uma velha cega com um pau na mão.
«Os senhores aqui a estas horas, tão tarde!» - admirou-se
ela.
Enfim, tirou-nos do enleio com um berro ao cão, que passou
por nós como uma seta.
Às nove horas, na vila, as pessoas começavam a encher os
cafés.
In TORRE DE MONCORVO Março de 1974 a 2009
De Fernando Assis Pacheco ,Leonel Brito, Rogério Rodrigues
Edição da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
Conceição Vilela :gosta .
ResponderEliminarAngelo Moita :Sãozinha!!! pelo Natal estive em Moncorvo e fiz questão de ir ao miradoiro da Cardanha, passei depois pelos Estevais e lembrei-me da tua família, e mais, das vezes que ia lá de moto com o teu. Para mim era um sonho e ficava anos à espera q...ue, os teus pais voltassem de férias da longínqua África, para dar mais uma voltinha de moto. Grandes tempos.
Passei também p`la Póvoa, onde nunca tinha estado, mas lá, senti-me sofrido e indignado pelo abandono que se faz sentir por essas paragens. Só vi uma habitante, com quem tive o prazer de ter uma breve conversa, mas também não era preciso mais porque o que por lá se passa é muito pouco. De qualquer modo, não sei se p`lo conteúdo da conversa se p`la simplicidade das palavras, não há dia que não pense na dita senhora e naquela aldeia. A todos que lerem o meu comentário um grande e forte abraço.
Aurelia Sendas escreveu: gostei de vere pois e bon lere hitorias verdadeiras pois a senhora carminda esta aqui no canada conta 93 anosde idade
ResponderEliminarA senhora Carminda já se encontra no lar em Toronto e fez 93 anos no dia de s.José.
ResponderEliminarÉ minha avó materna e já é tetravó já temos a quinta geração.