quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Língua Charra – Regionalismos de Trás os Montes e Alto Douro (obra em 2 volumes) Autor: A. M. Pires Cabral


 Sinopse: Com as suas quase 23 mil entradas (muitas delas desdobrando-se em múltiplas acepções), esta é sem dúvida a mais completa recolha de vocabulário popular trasmontano e alto-duriense publicada até hoje.
Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro é, por um lado, um apanhado de todas as obras congéneres a que o autor teve acesso, desde o labor pioneiro dos filólogos da Revista Lusitana, até às compilações em livro de Adamir Dias / Manuela Tender; Jorge Golias / Jorge Lage / João Rocha / Hélder Rodrigues; Jorge Lage; Rui Guimarães; e Vítor Fernando Barros, entre outros, a quem se presta aqui homenagem. Por outro lado, tem uma base sólida na memória e experiência do autor, nascido em meio rural e desde sempre apaixonado pela linguagem popular.
Neste dicionário, questiona-se a etimologia, faz-se relacionação intervocabular e adicionam-se elementos e comentários que permitem uma melhor compreensão. Para além disso, ilustram-se os vocábulos com muitas centenas de abonações, retiradas quer de obras literárias, quer do adagiário, cancioneiro, devocionário e romanceiro populares.

A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim, Macedo de Cavaleiros, em 1941. A sua actividade literária estende-se pelas áreas da poesia, ficção, teatro, crónica, antologia e ensaio. Estreou-se em 1974 com Algures a Nordeste, poesia, e tem publicadas para cima de 50 obras.
Recebeu os seguintes prémios literários: Círculo de Leitores 1983, com Sancirilo; Prémio D. Dinis 2006, com Douro: Pizzicato e Chula eQue Comboio é este; Grande Prémio de Literatura DST 2008, com O Cónego; Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2009, com As têmporas da cinza; Prémio de Poesia do PEN Clube 2009, com Arado; e Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco APE / C. M. de Vila Nova de Famalicão 2010, com O porco de Erimanto.
Homem de fundas raízes rurais, de que muito se orgulha e que muito valoriza, tem procurado dar-lhes voz em numerosos momentos da sua obra, de que uma parte muito significativa tem como referente a identidade cultural trasmontana. É o caso deste Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, glossário que vinha paulatinamente preparando há cerca de três décadas.


Prefácio

Forma natural de comunicação, a linguagem espelha grupos, regiões, países, enlaçando distâncias ou inscrevendo tempos nas mais pequenas unidades de sentido. Comunidades fora do seu húmus, de África às Américas e à emigração europeia, revêem-se no leite expressivo de um vocabulário ancorado na infância; e, assim alimentadas, as almas fixam o transitório das suas vidas em dispositivos seculares abertos à inventiva, seja a variação de um romanceiro, a leveza de quadras soltas, um adagiário aqui e ali peculiar.
A História e a Geografia criaram nichos característicos na metade nordeste, que atraem etnógrafos desde finais de Oitocentos, antes de os etnólogos e seus filhos antropólogos rastrearem do Barroso a Rio de Onor. Pudéramos recuar a versos de António Ferreira, que veio casar a Lamas de Orelhão, Mirandela; a Diogo de Teive e Manuel Severim de Faria, demorando-se em Miranda do Douro; a D. Frei Bartolomeu dos Mártires, nas alturas barrosãs. Todos eles se espantaram com populações resistentes e conservadoras. Este adjectivo ganharia foros de virtude. A vaga mais coerente de um fundo interesse por este solo, seus modos de vida, suas músicas e falares, veio com o médico e poeta episódico José Leite de Vasconcelos, amigo de Trindade Coelho, o qual, além de fautor do Mirandês, acrescentou aos vários ângulos de uma investigação notável, em parte inédita, uma genuína paixão pelo nosso teatro e romances populares, bem como pelo cancioneiro, toponímia e colheita de pepitas vocabulares analisadas na sua Revista Lusitana. Assim, estudiosos maiores ‒ Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Michel Giacometti ‒ navegaram por estes montes, acrescentados de linguistas como Paiva Boléo, Lindley Cintra e colaboradores. Emergiu escola autóctone em cada uma dessas disciplinas, de que saíram, até recentes teses na Sorbonne e demais universidades, contribuições indispensáveis de Francisco Manuel Alves e discípulos, não todos ministros de Deus, caso de Hirondino Fernandes (ministro de homens, paciência de santo). Antes da moderna onda de dicionaristas de falares locais, fora, todavia, o padre Joaquim Manuel Rebelo a pegar na tocha baçaliana de glossário regionalista. Exceptuamos, para o geral da língua, dicionário e consultório linguístico na Imprensa de Augusto Moreno ou prontuário de Edite Estrela; para o Rionorês, Daniel José Rodrigues; para o Mirandês, o dicionário Português-Mirandês, em curso, de Amadeu Ferreira / José Pedro Ferreira.
Ora, desde há décadas ‒ que são uma vida inteira para quem nunca perdeu o contacto com as raízes ‒, A. M. Pires Cabral vinha construindo estoutra catedral de palavras, óbolo de ouvinte, leitor e celebrante. Melhor, concelebrante, onde as vozes de vivos e redivivos vêm coroadas pelas abonações de João de Araújo Correia e Camilo Castelo Branco, que se fez em Vila Real. Este certificado de origem,em contexto, deveria ser obrigatório em trabalhos afins. No mínimo, já aponta para um quadro literário regional, que motivos convergentes universalizam, depois.
Essa caução serve à morfologia facetada de inúmeros termos, às inesperadas ocorrências, tal a variedade fonológica. Nem sempre, claro; como nem todas as acepções exigem custódia das autoridades pós-Moraes (aqui, Morais), percebendo-se, então, a capacidade definitória do dicionarista, que veio publicitando excertos ao longo dos anos e afinando metodologias. Olhámos a larga amostra de s. [substantivo], na dúvida se não devera constar m. [masculino] ou f. [feminino]. Intuitivamente, percebe-se o género, e mais facilmente o número, singular ou plural.
Neste terreno movediço, explicações que parecem evidentes ficam interrogadas, sugeridas, moduladas. Oscila-se entre a solução e a proposta etimológica. Ajuda o recurso inter-idiomático, sobretudo, com o muito presente Galego. Mas a sensação de fronteira é mais visível numa das principais dificuldades: fixar as sibilantes b / v. Outra é dar conta de metamorfoses inauditas, convocando terminologia da velha gramática, em que relevamos os fenómenos de queda ou acrescentos fonemáticas ou silábicos, e mais estes (prótese, epêntese, paragoge). Sem a representação fonética, que exigiria outra vida e várias equipas, resolve-se o drama palatal, a variável ditongação, o modo de dizer, cujo esforço interpretativo cabe ao leitor-adivinho, se não for íncola verdadeiro. Terceira vida pediria a datação.
Não vá sem assinalar a experiência de autor, chamada a terreiro, para compor procissão de razões. É maneira agradável dos pioneiros, que assim as acreditam, entre a Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira, e a Origem da Língua Portuguesa (1606), de Duarte Nunes de Leão. Este investimento do sujeito não deixa de beliscar um paradigma entretanto cristalizado.
Enfim (para encurtar, mas não os méritos), essa virtuosa presença dá azo a micro-histórias deliciosas, contagiantes, se pousarmos sobre, por exemplo, ABADE, a que a memória de cada um acrescenta um ponto, ou fio, ou botão, à batina desapertada; e, se atentarmos no ABAFADOR, sucede minicurso de história cultural, com que mais enriquecido sai o turista desprevenido.
A vantagem para professores e outros especialistas é inegável; para escritores, então, é mina inesgotável, além de desafio. Entendidas referências com apoio desta chave-mestra, a mensagem tornar-se-á mais expressiva de um universo regional (já não provincial) que vai para lá de si. Se se quer mostrar particular, desde o uso de arcaísmo à compleição moderna, só o consegue por arte de uma linguagem que inunda estas páginas.
Alicerce e incompletude, vademecum e lembrete, desvio e familiaridade, este balanço de mil tarefas conjugadas ‒ e também de uma vida em palavras ‒ responde às lamentáveis dicionarizações de língua e fala ‘charra’ (como se fosse água-chilra), trazendo lustre de dignidade ao que entranhadamente somos. Sério, fecundo e dadivoso, este opus magnum de A. M. Pires Cabral pede menagem e honra Editor.

Ernesto Rodrigues
Academia de Letras de Trás-os-Montes
Universidade de Lisboa                           

1 comentário:

  1. Há quem tenha "abundado" um "tamaninho" de pão para não "canear". Quer um dicionário?
    http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=30&did=132340

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.