![]() |
Júlia e Assis |
Cheguei a Coimbra em Outubro de 1956 para cursar Filologia Germânica, pois o meu pai achava que era um curso de futuro e era bonito uma senhora falar bem tantas línguas... Mas, dado que Coimbra era então considerada um antro de perdição e todo o cuidado era pouco, pôs-me num lar de freiras, na Rua da Matemática.
A verdade é que, para mim, que vinha lá das berças, a Universidade e até o ambiente do Lar (onde, entre estudiosas da sebenta, havia raparigas muito esclarecidas), era um mundo outro. Tive a sorte de ter três ou quatro professores muito, mas muito para lá do comum dos professores da universidade de então. Repare-se: no 1º ano tive em Filosofia Moderna o grande Joaquim de Carvalho. Foi o último ano em que deu aulas, pois estava quase cego; em História Moderna e História de Portugal, foi meu professor Damião Peres;em Grego, a Professora Rocha Pereira; e em Literatuas Inglesa e Alemã (principalmente poesia de Shakespeare, Goethe, Hölderlin e Rilke), o ilustre transmontano Paulo Quintela.
Paulo Quintela ia metendo umas biscas de política sempre que lhe era possível, e comecei a aperceber-me que no mundo não havia só a sebenta. Havia outros livros bem mais importantes. Não havia só a nossa terrinha e os nossos pais sacrificando-se a trabalhar para nos dar um curso. Havia homens e mulheres que lutavam pela liberdade de reunião e de expressão, aqui e noutras terras. Havia povos que queriam libertar-se, havia a guerra colonial.
Tive um colega que se destacou dos outros: o Fernando Assis Pacheco. Um dia ou dois antes das frequências batia-me à porta “para fazer revisões” . Para ele era a primeira vez que olhava para a matéria. E chegava. Não era aluno exemplar, pois nunca deu importância à nota . Mas tinha uma cultura superior à de nós todos, e posso dizer que aprendi muito com ele. Foi um bom amigo. Pela sua mão entrei no CITAC ( Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) .
Na Queima das Fitas de 1959 , o nosso carro de “Novos Fitados”, por feliz ideia do Fernando Assis Pacheco , foi buscar inspiração a um poema de James Thompson: “O Castelo da Indolência” . Era na garagem da casa dele que o decorávamos, tentando fazer da camioneta um castelo , e lhe pregávamos flores de papel azul escuro . Só o acabámos de um lado. Obtivemos o 1º prémio pois, face ao título, o Júri achou que a ideia e a execução estavam excelentes. E à noite fizemos um lauto jantar(ver fotos).
![]() |
Carro de Germânicas .Queima das fitas de1959 |
Também pela mão do Fernando fui, pela 1ª vez, a uma Assembleia Magna, ainda a Associação Académica era no Palácio dos Grilos, e a reunião teve lugar num amplo pátio traseiro, ao ar livre. Debatia-se o conteúdo da “Carta a uma Jovem Portuguesa”, de Artur Marinho de Campos, que saíra na “Via Latina” em Abril de 1961. O Fernando apontava-me os pides que por lá se encontravam, encostados às paredes. O assunto não se esgotou. Nova Assembleia Magna ficou marcada para daí a duas ou três semanas. Falou um estudante que eu nunca tinha visto. Gostei de o ouvir e perguntei quem era. “É o Guarda Ribeiro”, alguém respondeu . (Mal suspeitava eu que havia de ser o meu marido ). No final, quando íamos sair , encontrámos as portas fechadas. A pide tínha-nos trancado lá dentro e só deixava sair quem se identificasse. Recusámos. Éramos cerca de uma centena, mas só umas 10 raparigas. Os nossos colegas começaram a juntar-se cá fora: iam dar-nos força e levar-nos sandes ; içávamos os sacos da comida por meio de cordéis. Ao 2º dia cortaram a luz. Os colegas levaram-nos também velas. Ao 3º dia cortaram a água e o telefone. Foi muito mau: havia raparigas que entraram em pânico. Claro que tínhamos medo de represálias, até porque os exames estavam à porta. E nem queríamos pensar no desgosto dos nossos pais. O Guarda Ribeiro, o Bingre do Amaral, o Assis Pacheco e mais dois ou três, de que já não recordo os nomes, propuseram que se negociasse com a pide: todos os rapazes se identificariam, se as raparigas pudessem sair de imediato sem serem identificadas. E acabou por ser assim.
Estávamos em Maio/Junho de 1961, no ano anterior ganhara a lista dos estudantes das Repúblicas para a Direcção da Associação Académica. Cabeça da lista: o Carlos Candal ( o menino querido das meninas das Letras). Por trás dele (e a empurrá-lo) , outros estudantes que não podiam aparecer às claras.
As freiras puseram-me no olho da rua...E por aqui me fico, que a conversa já vai longa .
Júlia Ribeiro