sexta-feira, 25 de março de 2011

Júlia Barros e Assis Pacheco - Dois amigos de Moncorvo

Júlia e Assis
Cheguei a Coimbra em Outubro de 1956 para cursar Filologia Germânica, pois o meu pai achava que era um curso de futuro e era bonito uma senhora falar bem tantas línguas... Mas, dado que Coimbra era então considerada um antro de perdição e todo o cuidado era pouco, pôs-me num lar de freiras, na Rua da Matemática.

A verdade é que, para mim, que vinha lá das berças, a Universidade e até o ambiente do Lar (onde, entre estudiosas da sebenta, havia raparigas muito esclarecidas), era um mundo outro. Tive a sorte de ter três ou quatro professores muito, mas muito para lá do comum dos professores da universidade de então. Repare-se: no 1º ano tive em Filosofia Moderna o grande Joaquim de Carvalho. Foi o último ano em que deu aulas, pois estava quase cego; em História Moderna e História de Portugal, foi meu professor Damião Peres;em Grego, a Professora Rocha Pereira; e em Literatuas Inglesa e Alemã (principalmente poesia de Shakespeare, Goethe, Hölderlin e Rilke), o ilustre transmontano Paulo Quintela.
Paulo Quintela ia metendo umas biscas de política sempre que lhe era possível, e comecei a aperceber-me que no mundo não havia só a sebenta. Havia outros livros bem mais importantes. Não havia só a nossa terrinha e os nossos pais sacrificando-se a trabalhar para nos dar um curso. Havia homens e mulheres que lutavam pela liberdade de reunião e de expressão, aqui e noutras terras. Havia povos que queriam libertar-se, havia a guerra colonial.
Tive um colega que se destacou dos outros: o Fernando Assis Pacheco. Um dia ou dois antes das frequências batia-me à porta “para fazer revisões” . Para ele era a primeira vez que olhava para a matéria. E chegava. Não era aluno exemplar, pois nunca deu importância à nota . Mas tinha uma cultura superior à de nós todos, e posso dizer que aprendi muito com ele. Foi um bom amigo. Pela sua mão entrei no CITAC ( Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) .
Na Queima das Fitas de 1959 , o nosso carro de “Novos Fitados”, por feliz ideia do Fernando Assis Pacheco , foi buscar inspiração a um poema de James Thompson: “O Castelo da Indolência” . Era na garagem da casa dele que o decorávamos, tentando fazer da camioneta um castelo , e lhe pregávamos flores de papel azul escuro . Só o acabámos de um lado. Obtivemos o 1º prémio pois, face ao título, o Júri achou que a ideia e a execução estavam excelentes. E à noite fizemos um lauto jantar(ver fotos).
Carro de Germânicas .Queima das fitas de1959
Também pela mão do Fernando fui, pela 1ª vez, a uma Assembleia Magna, ainda a Associação Académica era no Palácio dos Grilos, e a reunião teve lugar num amplo pátio traseiro, ao ar livre. Debatia-se o conteúdo da “Carta a uma Jovem Portuguesa”, de Artur Marinho de Campos, que saíra na “Via Latina” em Abril de 1961. O Fernando apontava-me os pides que por lá se encontravam, encostados às paredes. O assunto não se esgotou. Nova Assembleia Magna ficou marcada para daí a duas ou três semanas. Falou um estudante que eu nunca tinha visto. Gostei de o ouvir e perguntei quem era. “É o Guarda Ribeiro”, alguém respondeu . (Mal suspeitava eu que havia de ser o meu marido ). No final, quando íamos sair , encontrámos as portas fechadas. A pide tínha-nos trancado lá dentro e só deixava sair quem se identificasse. Recusámos. Éramos cerca de uma centena, mas só umas 10 raparigas. Os nossos colegas começaram a juntar-se cá fora: iam dar-nos força e levar-nos sandes ; içávamos os sacos da comida por meio de cordéis. Ao 2º dia cortaram a luz. Os colegas levaram-nos também velas. Ao 3º dia cortaram a água e o telefone. Foi muito mau: havia raparigas que entraram em pânico. Claro que tínhamos medo de represálias, até porque os exames estavam à porta. E nem queríamos pensar no desgosto dos nossos pais. O Guarda Ribeiro, o Bingre do Amaral, o Assis Pacheco e mais dois ou três, de que já não recordo os nomes, propuseram que se negociasse com a pide: todos os rapazes se identificariam, se as raparigas pudessem sair de imediato sem serem identificadas. E acabou por ser assim.
 Estávamos em Maio/Junho de 1961,  no ano anterior ganhara  a lista dos estudantes das Repúblicas para a Direcção da Associação Académica. Cabeça da lista: o Carlos Candal ( o menino querido das meninas das Letras). Por trás dele (e a empurrá-lo) , outros estudantes que não podiam aparecer às claras.
As freiras puseram-me no olho da rua...
E por aqui me fico, que a conversa já vai longa .

Júlia Ribeiro

12 comentários:

  1. Memórias fantásticas! Estas conversas nunca ficam longas. A "minha" Coimbra foi bem mais pacífica. Umas insípidas manifestações anti-propinas e um ou outro fecho da Porta Férrea, com algumas lutas partidárias pelo meio. Felizmente para a minha geração, viveram-se nessa altura tempos mais calmos, a roçar o tédio da bonança cavaquista...
    Continue a dar-nos conversa.
    Antero Neto

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  2. Gostei tanto de ler este seu texto! Que bonita e rica partilha! Textos destes, autobiográficos e/ou mais ou menos ficcionados, constituem documentos históricos, a meu ver, e deveriam ser divulgados de forma a chegarem às gerações mais recentes. Esta forma de narrar é muito agradável de se ler, tem seguramente uma boa recetividade. E com o talento da Júlia...
    E, perdoem-me a brincadeira com coisas sérias, o conceito de 'geração à rasca' seria certamente... revisto ou redimensionado. :)
    Abraço com ternura e agradecimento para si Julinha e também para o Lelo, que mantém este blogue vivo e interessantíssimo.
    Contchi

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  3. Alguns,lúcidos, responsáveis e corajosos,pertenciam,sem sombra de dúvida,a uma geração "à rasca":era o tempo do fascismo,dos pides,das perseguições,das prisões,para muitos,da interrupção dos estudos.Mas que não eram uma geração "rasca" mostra-o bem o texto da Julinha.
    Parabéns e obrigada por ter feito parte dessa geração de elite.

    Uma moncorvense

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  4. Que belas memórias e que melhor contar!
    Conte-nos mais.
    A memória participa da nossa cada vez mais fraca e necessária coesão identitária.
    Sem memória não há história; sem história não há identidade nacional; sem...somos uns verbos de encher.
    Obrigado por ter memória, por gostar dela, e pela disponibilidade em a partilhar connosco.

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  5. Alexandra diz:
    Também acho que nos deve contar mais. Eu fico encantada e às vezes até me pergunto como se pode ter uma memória assim. Eu tive sempre memória de galinha.

    Um beijinho da Alexandra.

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  6. Um belo texto de amizade! Foi muito interessante e gostei muito de o ler.

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  7. Outros hinos à amizade.
    DO ZECA:

    Traz outro amigo também
    Amigo
    Maior que o pensamento
    Por essa estrada amigo vem
    Por essa estrada amigo vem
    Não percas tempo que o vento
    É meu amigo também
    Não percas tempo que o vento
    É meu amigo também

    Em terras
    Em todas as fronteiras
    Seja bem vindo quem vier por bem
    Se alguém houver que não queira
    Trá-lo contigo também

    Aqueles
    Aqueles que ficaram
    (Em toda a parte todo o mundo tem)
    Em sonhos me visitaram
    Traz outro amigo também
    ---------------
    Venham mais cinco


    Venham mais cinco,
    duma assentada que eu pago já
    Do branco ou tinto,
    se o velho estica eu fico por cá
    Se tem má pinta,
    dá-lhe um apito e põe-no a andar
    De espada à cinta,
    já crê que é rei d’aquém e além-mar

    Não me obriguem a vir para a rua gritar
    Que é já tempo d' embalar a trouxa e zarpar

    A gente ajuda, havemos de ser mais
    Eu bem sei
    Mas há quem queira, deitar abaixo
    O que eu levantei

    A bucha é dura,
    mais dura é a razão que a sustem
    só nesta rusga
    Não há lugar prós filhos da mãe

    Não me obriguem a vir para a rua gritar
    Que é já tempo d' embalar a trouxa e zarpar

    Bem me diziam, bem me avisavam
    Como era a lei
    Na minha terra, quem trepa
    No coqueiro é o rei

    BY GOOGLEMAN

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  8. Que é feito de ti, Júlia? Através de um transmontano acabei de descobrir este blog e quase que ia dando em doida de tanta alegria. O meu filho até se assustou porque ri e chorei ao mesmo tempo. Eu sou a Zé Campos. Ia nesse carro - o Castelo da Indolência! Estou a reconhecer a Laura, de Vila Real, a Mª Olímpia, de Chaves, a Deolinda, a Aline e claro, a ti, a big boss da malta. Tive muita pena do Fernando Santiago e da Luz Murta. A Mª Emília Mexia era minha parceira ... Já tantos nos deixaram. Recordamo-los com saudade, não é? Um gesto lindo o teu. Que texto fantástico. Eu também li a "Carta a uma Jovem Portuguesa". Li-a mas já não me lembrava e na altura achei que o Marinho de Campos tinha toda a razão, embora a carta assustasse muita gente, incluindo os meus pais. Mas lembro-me bem do Candal, Presidente da Direcção da A.A. em 60, não foi? Estou com uma vontade louca de te ver. Temos de nos encontrar. Vai ser fácil, porque já soube que tens uma irmã a viver no Porto.

    Muitos abraços
    Mizé

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  9. Olá, Amigos Blogueiros :

    A todos o meu muito obrigada pelas vossas palavras tão amáveis, nesta hora de Amizade.

    Ao Antero quero também agradecer, penhorada, as fotografias que teve a gentileza de me mandar. Não foi possível ir a Mogadouro. Tive imensa pena. Para a próxima não faltarei. Está prometido.

    À Contchi e a "Uma Moncorvense", dois abraços muito grandes. Os vossos elogios estão inflacionados pela amizade.

    Retribuo o beijinho à Alexandra.


    Júlia

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  10. Amigo José Albergaria : Concordo plenamente consigo: sem memória não saberíamos sequer quem somos. E sem identidade andaríamos às cegas, perdidos o rumo e o norte.
    Obrigada pelas suas palavras.

    Um abraço
    Júlia

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  11. Olá, Carina:
    Muito grata, aqui lhe deixo um abraço
    Júlia

    Hello! Googleman:
    Bem haja por nos trazer aqui estes dois poemas do Zeca, verdadeiros hinos à Amizade. O Zeca e o meu marido eram grandes amigos e, por isso, meu amigo também.

    Júlia

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  12. Oh, Maria José! Mizé !

    Que surpresa boa! O mundo virtual tem destas coisas ... Claro que temos de nos encontrar. Nem podia deixar de ser.
    Eu creio que a melhor homenagem aos colegas e amigos que já partiram é recordá-los naqueles momentos de alegria e amizade. Estas memórias, à distância de meio século, aquecem a alma.
    Falaste aí do Candal ter sido eleito Presidente da Associação Académica em '60 e talvez tenhas razão. Vou ver isso.
    Fica aqui o meu e-mail: julia.ribeiro@gmail.com
    Temos de pôr a conversa em dia, o que levará uns tempos largos.
    Tenho contactado com a Laura e com a Mª Olímpia e outras moças do Lar da Rua da Matemática, porque nos encontramos numa almoçarada uma vez por ano. É uma coisa estupenda. E o mais engraçado são os maridos: juntam-se todos a um lado da mesa, porque não entram nas nossas conversas.

    Um abraço imenso
    Júlia

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