domingo, 30 de outubro de 2011

Reunião clandestina guardada pela PSP, por Júlia Ribeiro

 Após o meu estágio pedagógico, vim viver para Leiria – e dar aulas no Liceu – em Outubro de 1970. Por essa altura , em Lisboa, um grupo de professores eventuais e provisórios (não ganhavam em férias, o tempo de serviço não contava para a reforma e não tinham vínculo ao Estado, quer dizer, podiam não ser reconduzidos no ano seguinte) organizaram-se em grupo de reivindicação sócio-profissional. Rapidamente, o grupo se alargou a todo o país e, em 72/73, já era o Grupos de Estudos do Pessoal Docente do Ensino Secundário (GPs / GEPDES) . Formaram-se em seguida grupos de trabalho e luta-se pelo pagamento dos meses de férias (Agosto e Setembro), luta-se pelo vínculo ao Ministério da Educação, e luta-se sobretudo por uma Associação dos Professores forte e coesa bem como pela melhoria do ensino. Em Julho de 73 aparece o 1º número da nossa revista “O Professor”. Aqui a abertura do ministro Veiga Simão fez marcha-atrás e, como é obvio, as perseguições aos GPs e à revista tornaram-se mais ameaçadoras.
Leiria, mais ou menos no centro geográfico do país, era um bom ponto de runião. Mas a minha casa, ainda que numa avenida pouco movimentada, tinha um inconveniente: numa ponta da avenida ficava o quartel da GNR e na outra ponta a esquadra da PSP. O meu marido achou que até podíamos tirar partido da situação. As reuniões, a nível nacional, de uma dezena de pessoas vindas do norte, do sul e do centro , eram apenas duas, quando muito, três no ano. Procederíamos normalmente como se de uma festa de aniversário se tratasse . E assim fizemos. O meu marido foi para a rua, para alertar a malta caso fosse necessário. Os miúdos foram para a casa dos vizinhos a ver o Bonanza (nós não tínhamos televisão) . Cá fora tudo a postos.
Os meus colegas de Lisboa, Faro, Porto, etc. haviam estacionado os carros num pequeno largo ao lado da minha casa. Eram uns seis ou sete automóveis e, eventualmente, seria a única coisa que denunciaria algo de menos comum.
Lá dentro, tudo a postos. Uma dúzia de pessoas, com papéis nas mãos prontos para analisarmos, discutirmos e decidirmos o que fazer nas escolas. Mas, note-se, havia também um bolo de anos ali à mão de semear. Sobre a mesa uma toalha bonita e toca de trabalhar. A certa altura, alguém olhou por trás da cortina de uma janela e disse baixinho : “Júlia, o teu marido está a falar com um polícia”. Rapidamente, os papéis sumiram debaixo da toalha, o champanhe foi aberto, o bolo colocado no meio da mesa, velinhas acesas, todos em pé, eu a chamar : “Vem, vamos cantar os parabéns” . E o meu marido: “Mas ainda faltam duas pessoas”. “Paciência” . Ele, já a entrar, de porta escancarada, convidando o sub-chefe da Polícia: “Faça favor, entre. Venha comer uma fatia de bolo”. “Ora essa, Senhor Doutor. Muitas felicidades ao aniversariante”. “Obrigado. Olhe, então se o casal que ainda não chegou, for estacionar em frente da esquadra, arranjam-lhe lá um lugarzinho? ” . “Claro que sim, fique descansado”. E nós, nesse interim, cantávamos em altas vozes para o sub-chefe da Polícia ouvir : “Hoje é dia de festa , cantam as nossas almas... “

Leiria, 16 de Setº.de 2011
Júlia Ribeiro

13 comentários:

  1. Esta está muito bem caçada!

    Um abraço
    Alex Cristina

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  2. Olá, Júlia:

    De vez em quando venho por aqui, ler as tuas estórias.
    Havia uma fotografia dessas em que eu também estava. E eu tinha-a, mas não sei onde pára.
    Amiga, digamos que os tempos que correm também não são famosos.

    Graça, Porto

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  3. F.Rodrigues disse:

    Oi, Júlia: Mas que novinhas que nós éramos. Reconheço a Clara, a Amélia, a ti e o Américo. Como vai a malta por aí? Precisamos de gente que volte a ir para a luta.
    A Graça disse-me que se esqueceu de te deixar um abraço. E outro meu.

    Tudo de bom para vós.

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  4. Ainda aqui volto : o nosso colega não é Américo: é Adérito. Peço desculpa.

    Abraços para a malta de Leiria.
    F.Rodrigues

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  5. Pois claro que agora podemos falar. Tirante isso, que mais temos : emprego precário, contratos a prazo e olho da rua, 2 meses de férias não pagavam? Agora cortam-nos 2 meses de subsidios. desemprego à bruta ! É tudo a andar pra trás. Já o meu avô dizia que pra trás meija a burra.

    Vitor

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  6. O nº 3 da revista O PROFESSOR: Fevº de 74 !!
    Estávamos quase no 25 de Abril.
    Agora são os meus filhos, se calhar os teus também , e os de todos nós que andam tão à rasca, como nós andávamos então.
    Esta porra nunca mais tem conserto.

    A. Freitas - Coimbra

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  7. E aquele policia que queria mostrar serviço e prendeu um engenheiro por estar a ler Técnicas para Cimento Armado.O que vem aí?
    Será?
    http://www.facebook.com/photo.php?fbid=269022653133373&set=o.309243181300&type=1&theater#!/photo.php?v=10150346753290735

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  8. O que dizem os professores de hoje?Perderam a vontade de lutar?Tenho que conhecer esta senhora para lhe dizer simplesmente, bem-haja.
    Alexandre Gomes

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  9. As manobras e imaginação que era preciso arranjar para conseguir um simples encontro de trabalho !!!
    Claro que não perdemos a vontade de lutar, e ainda que seja possível reunir e falar, já falta o dinheiro para o carro e para a gasolina; a alguns de nós até já vai faltando o guito para uma refeição em restaurante barato ...
    Tempo livre, já nem se sabe o que isso é. Eu tenho dois empregos: as aulas (até quando???) e as explicações, que é o trabalho mais danado que pode haver ... Bom , vocês não têm obrigação de me estar a aturar.

    Obrigado, Colega Júlia Ribeiro.
    António da Silva Pinto

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  10. A EDUCAÇÃO EM PORTUGAL (não resisti em publicar)
    Criança conduz pai e tio à caça
    Uma criança de 12 anos conduziu uma carrinha pick up para que o pai, de 45 anos, e o tio, com 54, pudessem caçar à vontade durante a noite, em Urros, Torre de Moncorvo. O menor e os dois adultos foram identificados pela GNR por condução e caça ilegais. Os homens vão hoje a tribunal.
    Os três familiares foram surpreendidos em flagrante pela GNR, pelas 04h00 de domingo, depois de uma denúncia anónima. O menor conduzia a carrinha pelo monte, com o pai e o tio na carroçaria. "Um iluminava o terreno com um foco de luz enquanto o outro, com uma arma de caça, fazia os disparos e a criança conduzia o veículo", explicou o major Rui Pousa, do Gabinete de Comunicação da GNR de Bragança. O responsável acrescentou que esta situação é "grave" e "insólita" na região já que foi a primeira vez que se depararam com uma criança tão nova a conduzir um veículo, o que indica que seria prática frequente. Foram apreendidos três coelhos e uma lebre.
    Correio da manhã-2 de novembro

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  11. Olá Coleguíssimas:

    Nem imaginava que viesseis de visita por estes lados, tão longe, cá atrás das fragas. Gostei imenso de vos reencontrar.
    Infelizmente, a Clara já faleceu e o Adérito está mal.
    A Amélia continua a escrever os seus livros didácticos. Tem um blog de poesia, muito interessante.
    E nós, o resto da malta, por cá vamos andando, indignados com tanta sem-vergonha de governantes e políticos.

    Um abraço muito grande para todas
    Júlia

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  12. Diria agora Camões...

    I
    As sarnas de barões todos inchados
    Eleitos pela plebe lusitana
    Que agora se encontram instalados
    Fazendo o que lhes dá na real gana..
    Nos seus poleiros bem engalanados,
    Mais do que permite a decência humana,
    Olvidam-se de quanto proclamaram
    Nas campanhas com que nos enganaram!

    II
    E também as jogadas habilidosas
    Daqueles tais que foram dilatando
    Contas bancárias ignominiosas,
    Do Minho ao Algarve tudo devastando,
    Guardam para si as coisas valiosas.
    Desprezam quem de fome vai chorando!
    Gritando levarei, se tiver arte,
    Esta falta de vergonha a toda a parte!

    IIII
    Falam da crise grega todo o ano!
    E das aflições que à Europa deram;
    Calam-se aqueles que, por engano,
    Votaram no refugo que elegeram!
    Que a mim mete-me nojo o peito ufano
    De crápulas que só enriqueceram
    Com a prática de trafulhice tanta
    Que andarem à solta só me espanta.

    IV
    E vós, ninfas do Douro onde eu nado,
    Por quem sempre senti carinho ardente,
    Não me deixeis agora abandonado
    E concedei engenho à minha mente,
    De modo a que possa, convosco ao lado,
    Desmascarar de forma eloquente
    Aqueles que já têm no seu gene
    A besta horrível do poder perene!

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  13. Olá, caríssimo/caríssima Anónimo/a

    Estou totalmente de acordo com o conteúdo do seu poema "camoneano" .
    Penso até que nem ficaria mal se tivesse enviado a sua tão interessante "charge" política ao administrador do blog que, creio, a colocaria no corpo do próprio blog, em vez de ficar por aqui em comentário, que poucas pessoas irão ler.

    Júlia Ribeiro

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