quarta-feira, 12 de outubro de 2011

ASAS À IMAGINAÇÃO ,por Júlia Ribeiro

Mais uma estória do  Camané

Vamos dar a palavra ao Camané para nos apresentar o seu professor de Desenho:

“Vi-o em Alfândega da Fé, o homem que foi Governador Civil de Bragança, Deputado da Nação e Professor de Desenho. Não sei se teve outras actividades nem sei o que faz neste momento. Foi meu professor de desenho e é nessa qualidade que gostaria de falar dele pois, no pouco tempo em que me ensinou essa bela arte, fez de mim o grande artista que agora sou, com ideias brilhantes e bem fundamentadas. Portanto, estou profundamente grato ao meu professor de desenho que, em tempos idos, passou pela Escola Secundária de Moncorvo “ .
Feita, na 1ª pessoa, a apresentação do Professor de Desenho do Camané, comecemos a estória.
O ano lectivo já ia algo adiantado – as aulas haviam começado há dois meses - quando entrou na sala uma figura assaz interessante: cerca de metro e meio de altivez, queixo erguido e barba aparada, vestimenta de alegre colorido e cachimbo à Sherlock Holmes.
Os garotos, entre os 13 e os 14 anos, já uns pequenos gabirus, trocaram olhares desconfiados, como que interrogando-se: “Quem será esta avis rara? “.
Era Dezembro de um inverno mais frio do que o habitual, a sala estava gelada, pois as janelas ficavam abertas durante os intervalos. O Sherlock Holmes teve de tirar o cachimbo da boca, porque começou a espirrar de tal modo que até o casaco de xadrez se ia descosendo nas costuras. Entre os espirros, demasiado sonoros para aquele arcaboiço franzino, o homenzinho disse:
“Sou o vosso professor de Desenho” e ordenou : “Fechem a merda das janelas. Temos de ...atchim!...”
“Santinho!” disse uma das miúdas baixinho,
“Temos de começar a trabalhar já, porque o tempo é escasso, atchim... “ .
“Santinho!” disseram três ou quatro garotas.
“ Mas que porra, já me constipei. Esta maldita terra é fria pra burro... atchim...”
“Santinho!” agora o coro já tinha vozes masculinas.
“A sala nem aquecimento tem ... Onde eu vim parar ... aaatchim ... aaaatchim ... “
“ Santiiiinho!” disse a turma com compostura.
“Estão feitas as apresentações. Para a semana... aaatch ... (desta vez atalhou o espirro com um lenço enorme e assoou-se ruidosamente) ... começamos as aulas. Podem sair . Aaaaatchim” .
“Santiiiiinho”, berraram os ganapos em coro e correram para o recreio, jogar a bola para aquecer.
Na semana seguinte o professor não apareceu. Mandou atestado médico por um mês, pois a maldita gripe era daquelas de durar o inverno inteiro.
“Quem nos disse do atestado foi a namorada dele, também professora na Escola e na nossa turma “, explicou o Camané.
Mas era um tanto estranho que aos fins de semana lhe passasse a constipação e viesse para Moncorvo, para casa da namorada.
As miúdas diziam que vinha para ela o tratar: “Vocês são todos uns más-línguas. Ela prepara-lhe tisanas caseiras para lhe baixar a febre e até lhe massaja os pés.”
“Massaja-lhe os pés, porquê?”
“Ora, porque alivia as dores”.
“Ih, que cheiro a chulé” .
“Como é que sabeis isso tudo?”
“Ora, as coisas sabem-se, não é?”.
Na verdade, a professorinha lastimava-se: “Quando ele está doente, eu também fico. Fico tensa, preocupada, procuro mil e uma hipóteses de cura nos livros, saco dos xaropes homeopáticos, das mezinhas caseiras, dos Ben-u-Rons e afins. Coitadinho, lá está agora com 39º C, deitado na cama, com uma toalha morna a passear pela testa, axilas e virilhas, a aguardar que o Brufen faça efeito. E à laia do melhor bálsamo, massajo-lhe os pés, finjo estremecimentos terríficos e tapo o nariz . Ele desmancha-se em gargalhadas que, a mim, galinha preocupada, me sabem a mel. Já li algures que o riso aumenta a capacidade de defesa do sistema imunitário ... beijinhos e amor a rodos também. Amanhã, logo se verá...”
Era o que dizia a professorinha, bela curandeira, aos colegas que lhe perguntavam pelo seu triste amado. O amanhã durou dois meses.


Quando, após tantas massagens, cuidados e carinhos, o Sherlock regressou, era quase Carnaval .
“Vamos trabalhar que o tempo é de ouro. Vão fazer um desenho: o tema é livre. Quero saber como é o vosso traço” .
Foi tudo o que disse. A turma ficou a olhar para ele com ar de espanto.
“Então, não me ouviram? TEMA LIVRE. Dêem asas à vossa imaginação" . E, no seu porte altivo, o metro e meio de gente, pendurado no seu cachimbo, pô-se a caminhar por entre as carteiras.
“Setôr, já fiz o que pediu “ disse o Camané , volvidos que eram 4 ou 5 minutos .
“Tão rápido?”
“Dei asas à imaginação, Setôr” e entregou-lhe a folha A4.
Na folha estavam desenhadas duas belas asas em voo livre e por baixo delas, também em letras muito bem desenhadas, a palavra: IMAGINAÇÃO . Como obra de arte que se preza, ostentava no canto inferior direito a que viria a ser assinatura famosa: Carlos Ricardo.
O professor pegou no papel, olhou-o, tirou o cachimbo da boca e disse: “Vem comigo”.
Levou o artista ao Conselho Directivo. Pelo corredor fora, aquele aluno de mente brilhante e imaginação alada, ia pensando no elogio que iria receber pela sua obra-prima. Talvez até recebesse um prémio. Chegados ao Conselho directivo, o dez reis de gente disse: “Venho participar deste aluno, pelo seu atrevimento, que ronda a má educação e o descaramento. Na sala de aula esteve a gozar comigo e com o trabalho” .
O Camané, naquele seu jeito meio brincalhão, mas no fundo muito sério , diz ainda um tanto inconformado: “ O Sherlockezinho participou e o meu sonhado prémio foi um processo disciplinar por ter dado asas à imaginação “.
Um mês depois este professor de Desenho teve assento na Assembleia da República como Deputado. Mais tarde foi Governador Civil .

PS – Remate da contadora da estória: é desta massa que tantíssimos dos nossos governantes se fazem.

Leiria 10 de Outº de 2011

Júlia Ribeiro

12 comentários:

  1. Luísa Trigo disse:Quem mais para dar "asas à imaginação" :))))

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  2. Este gajo não tem mesmo emenda. Lá diz o ditado "Quem torto nace tarde o nunca sindireita".

    Um fan do Camané
    JL

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  3. Fernanda disse:
    O Camané, se não existisse, tinha de ser inventado . Só ele se teria lembrado de "dar asas à imaginação".

    F.B.

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  4. Eheheheh !!! Camané do caraças, que desenho altamente. Só tu me fazias rir assim. Tu e a tua cronista de serviço.

    Um abraço a ambos.
    Vítor

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  5. O meu professor de desenho, foi chamado a cumprir um dever civico na assembleia da républica, foi governador civil e não sei se foi mais alguma coisa, encontrei-o em alfandega da fé passados uns anos já não se lembrava de nada, foi meu professor de desenho

    CAMANE RICARDO

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  6. Este Camané é demais, alguém fazia ideia como era o nosso amigo e como é, nunca chegaremos a conhecer o ser humano, obrigado julia Ribeiro pelas excelentes estórias que conta nesta não menos excelente blog que fala na nossa terra.

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  7. Teresa Malburet disse: E sempre com imenso prazer que leio as suas historias.Aguardo a proxima!!!

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  8. Li os contos ao Luar de Agosto e não tem nada a ver com estes que são com tanta piada que peço ao neto para mos ler varias vezes e de cada vez me rio mais com estas estórias. Até ja disse mas que dois se juntaram, o nosso Camané e a nossa Julinha.

    Um abraço para os dois.
    Maria da Querdoira

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  9. E eu também. Isto é o máximo.

    Hugo L.

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  10. A Dra. Júlia Ribeiro eu conheço. Mas quem adorava conhecer é o famoso Camané. Deve ser uma figura fora de série.

    Alex Crisrina

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  11. Olá Camané, famoso actor e o novo DaVinci.
    Um abração, pá.

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  12. Olá, Amigos:

    O Camané, de certeza, agradece as vossas palavras. Eu também.
    Para a semana, se a minha mão direita ajudar, escrevo mais uma estória deste fulano, que parece ter um alqueire delas e bem acogulado... (Na Corredoura dizia-se acobulado. Se calhar, eu também deveria dizer. Mas a malta mais nova, se fosse ao dicionário, não encontraria a palavra).

    Abraços
    Júlia

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