sábado, 24 de setembro de 2011

Pequenas Memórias “EXAME DE ADMISSÃO AOS LICEUS ”(XIII), por Júlia Ribeiro

“Grande é a poesia, a bondade e as danças ... Mas o melhor do mundo são as crianças “

Fernando Pessoa

1949 – De Moncorvo a Bragança – uma Aventura (2ª parte)

Notas de roda-pé – (2ª parte)
No dia seguinte, porque era Domingo, a Menina Maria da Graça Camelo levou-nos à missa. Foi ela quem nos penteou a todas: a mim, porque tinhas tranças compridas, à Frances e à Jovita, porque o cabelo era dificil de pentear. As três vestidas com as fatiotas de ver a Deus, lá fomos para a Sé. No fim da missa o padre avisou os fiéis que às 17 horas seria benzido no cemitério o primeiro jazigo de uma família cigana. E apelava a que se juntassem todos à cerimónia, pois somos todos filhos de Deus e , portanto, irmãos. Além de que o jazigo era um lindo monumento.
Ainda antes das 5 da tarde já estávamos nós em frente do jazigo. Todo de mármore branco, com um anjo grande de cada lado com asas bicudas viradas para o céu e vários anjinhos mais pequenos , era realmente uma linda obra. No cimo estava escrito : “Última Morada da Família Sigana de Abílio Oliveira”. Era a primeira vez que via a palavra cigana assim mesmo, escrita com um s . Estranhei, mas não pensei mais no assunto. Saímos do cemitério, fomos beber um pirolito fresquinho, depois passeámos até ao jardim perto do Liceu e vimos os patos no Rio Fervença. Estava quase passado o Domingo.
No dia seguinte, todas nós , com mais ou menos dor de barriga – era o primeiro exame fora da terra e o aparato era grande - aguardávamos à porta das salas. Feita a chamada , foi-nos dada uma folha com linhas, foi-nos indicado como preencher o cabeçalho e depois um silêncio total, porque ia começar o ditado. Então não é que a palavra cigano/cigana aparecia três vezes no texto? Numa aflição enorme, eu pensava que devia escrever com c mas se num sítio que toda a gente podia ver, estava a palavra escrita com um s, é porque era mesmo com um s e eu estava enganada. Foram uns momentos de tortura . Tínhamos de entregar a prova mas, nos últimos segundos em que podíamos ainda ressalvar um erro, decidi escrever no fundo da folha: “Eu acho que cigano se escreve com c de cão, mas num jazigo do cemitério está com s .
Fiz as outras provas de aritmética, de redacção, de desenho e, embora tudo tivesse corrido bem, eu saía sempre triste como a noite, por causa dos 3 erros no ditado. Dias depois saíram os resultados e todos os alunos da D. Luzia Areosa iam à oral. Eu também. Na divisão dos alunos pelos júris, eu fiquei para o último dia. A D. Luzia, sabedora dos meus 3 erros, escreveu-me uma cartinha a consolar-me.
Bragança
Chegou o dia da minha prova oral. Uma professora, membro do júri, ao pegar na minha folha do ditado, diz imensamente divertida: “Cá está a menina que escreveu a nota de roda-pé”. Eu, encolhida, quase em lágrimas, só queria um buraquinho para me esconder. E a professora continuou : “Esta menina nem sabe ainda o que é uma nota de roda-pé, mas escutem o que escreveu “ . Eu não sabia do que ela estava a falar mas coisa boa não seria , porque estava a rir-se, fazendo troça de mim. As lágrimas já teimavam em saltar-me dos olhos. E então, depois de um momento de suspense, ela leu em voz alta o que eu escrevera no fundo da página do ditado, acrescentando : “Devia haver mais cuidado com o que se escreve em edifícios públicos “. Virou o papel para mim e disse : “Estás a ver, minha linda, zero erros “.

Ainda hoje detesto notas de roda-pé.

Júlia Ribeiro

7 comentários:

  1. Pedro Flores DISSE:Desde k ouça " simpaty for the devil " dos Stones, vou

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  2. Hoje com o acordo ortográfico já nem sei como se escreve. Eu chumbava de certeza no ditado de admissão ao Liceu.

    Fernanda F.

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  3. Gosto destes textos. Estão bem escritos, sem ornamentos escuzados, muito claros.
    Não entendi o qua Pedro Flores disse no seu comentário. A culpa deve ser minha. Mas se quiser explicar eu agradeço.

    Maria do Carmo

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  4. Eu também detesto notas de roda-pé.
    Sempre saiem estas estórias para o Natal?

    Beijinhos
    Alex Cristina

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  5. Ai, um pirolito fresquinho ! Ah que tempos não ouvia tal palavra . E porque é que desapareceram os pirolitos? A canalhda juntava os testões todos para um pirolito.
    Vá , mais piquenas estórias que reavivam a memória.

    Céu

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  6. Bonita estorinha,como todas as anteriores.Queremos mais.
    Bjs.

    Uma moncorvense

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  7. Olá, comentadores, visitantes e demais blogueiros:

    Há dias que ando afastada do nosso Blog, mas acabei de chegar a casa e cá estou eu.
    Obrigada pelas vossas palavras amigas.

    Um abraço para todos e outro, muito especial, para o Leonel, que tem de aguentar este trabalhão todo.
    Júlia

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