Sob um pseudónimo líquido, aliterante,
esconde-se uma voz lírica a ouvir — tão intensamente quanto ela se dá. Diversa
nas tonalidades que ecoam nesta tripartição, a primeira ideia é estarmos face
ao diário de uma paixão amorosa («A Paixão / é o motor da poesia»), com alguns
dias mais inspirados e dolorosos. São derivações do ser no que se tem e não se
tem, no que se quis ser e não se conseguiu, nos sinais de desfasamento, na
perpétua incoincidência — centramento anímico esse que evoca gritos e epístolas
de grandes apaixonadas (lembrem-se as cinco missivas de Maria Alcoforado), como
se percebe num dos mais belos e cantantes poemas, "Neste inquieto
grito": «Silêncio mudo / que no coração trago. / Olhos de veludo / com que
te afago. // Meu corpo cansado, / minha mente louca, / tal cavalo alado, /
voando pra tua boca. // Corre mais além / neste frenético beijo. / Não existe
ninguém / que pare o meu desejo. // A ti me dou, / ao amor me entrego. / Eu
toda sou, / o teu imenso ego. // Neste inquieto grito / de árvore florida, /
alcanço o infinito, / num abraço perdida...» Recorda-nos, também, a memória
vazada no romance histórico Despedimo-nos, então (2009), assinado por Idalina
Brito, que é um adeus de amantes nas perdidas ilusões de um 25 de Abril agitada
e esperançosamente vivido. Na segunda parte, emergem cenários e olha-se às
terceiras pessoas. Intervala-se aquela obsessão com toques descritivos. As
naturezas mortas não são muito comuns em poesia, mas, aqui, até as folhas secas
tomam cor. "Searas maduras",
com que encerra este ciclo, é uma reflexão sobre a nossa passagem terrena; o
envolvimento, porém, é vegetal, animal, e anuncia, mesmo, uma solução a dois,
em quadros enfim harmónicos. Das árvores cuidadosamente nomeadas ao lameiro, da
inesperada gataria ao palhaço, o ser soltou-se, olhou em redor, sente em si as
dificuldades alheias que a loquacidade política não resolve.
O terceiro 'livro' sintetiza amor e vida; abre
com aquela imagem do «cavalo alado», que vai em frente, porque estamos em
continuum, e porque os sentimentos não morrem (só mudam os protagonistas),
enquanto entreluzem instantes de felicidade. Vemo-nos crianças sob olhar dos
mais velhos, e outro "Parque infantil", a fechar itinerário, é sinal
de esperança, de «encantamento», «De vida». Os gritos, agora, são outros;
passámos de longo subterrâneo opressivo ao ar livre invadido por crianças, que
são nossa permanência. A poesia portuguesa de hoje caminha por diferentes
areais. O à-vontade de alguns títulos, o descritivismo e uma prosa poética
cavalgando bem os versos situam esta seleção no que por aí fora se vai fazendo;
acrescenta-se, todavia, algo de que ainda se cuida pouco: um regresso aos
rostos e derivas do ser, empatia com os outros, e, sobretudo, com a natureza,
aqui, variamente aguarelada, quase toda transmontana. É, , isso, refrescante
acompanhar esta aventura.
Ernesto Rodrigues
Fonte:
"Derivações do Ser", de Lara de Léon
Edição
Calendário de Letras
Aguarela de: Manuel Correia
Com escasso tempo para computador, os comentários têm de ser breves: o texto do Ernesto Rodrigues é extraordinário. A julgar pelo que o crítico diz e pela amostra apresentada, a poesia da Maria Idalina Brito merece ser conhecida. Parabéns.
ResponderEliminar